De máscaras a mordaças

O uso de máscaras na pandemia atual já está se disseminando. Seja por vontade própria e conscientização da população ou por imposição de decretos governamentais, elas aí estão, tomando conta das ruas. Apesar de ainda serem poucas as evidências científicas sobre benefícios do uso de máscaras em situações como a atual, seu uso é intuitivo e sem efeitos colaterais significativos. Além disso, a máscara sinaliza que estamos cientes dos eventuais riscos de contágio e da necessidade de proteção para nós mesmos e as outras pessoas com as quais interagimos. Mas as máscaras devem servir para proteger a população, jamais para simbolizar algum tipo de restrição de liberdades como se fossem um tipo de mordaça.

Existe atualmente um chamado “pensamento hegemônico” em relação à pandemia, mas também há visões distintas dela entre ótimos pesquisadores no mundo todo. A questão importante é que o tal pensamento dominante deve conquistar a hegemonia através de um debate de ideias amplo e plural. Para que isso ocorra – principalmente em uma crise aguda em que novas peças são constantemente acrescidas ao quebra-cabeças – o debate deve ser contínuo e com total liberdade, sem qualquer tentativa de supressão das ideias que destoam do pensamento hegemônico. Isso permite que o “pensamento hegemônico” seja continuamente adaptado e melhorado.

Recentemente, dois médicos da Califórnia deram uma entrevista em que apresentaram dados obtidos em um estudo e sugeriram que se poderia reduzir gradualmente as medidas de isolamento social para a população local. O vídeo original teve em poucos dias milhões de visualizações e acabou sendo retirado das plataformas do YouTube por “violar as normas da comunidade”. O YouTube foi acusado de censura e a CEO da empresa alegou que qualquer conteúdo que seja contrário à posição da OMS estará contra as normas da comunidade e, portanto, será retirado do ar.

Parece haver um novo tipo de censura hoje, a qual é exercida sem o uso de repressão explícita. Com essa censura digital, pode-se excluir um vídeo em que dois profissionais habilitados dão sua opinião sobre uma questão importante e ao mesmo tempo permitir que o senhor Bill Gates, sem quaisquer credenciais técnicas em saúde, seja tratado como uma autoridade sanitária e apareça o tempo todo abanando os braços freneticamente e dizendo que “a normalidade só vai voltar com a (minha) vacina!” Como tenho o estranho hábito de visitar as fontes, assisti a todo o vídeo e – pode-se concordar ou não – foram feitas afirmações interessantes sobre imunologia e sobre a realidade daquela região específica da Califórnia, sem nunca sugerir a sua generalização para outros locais, até porque eles reconhecem a heterogeneidade com que a doença atinge os países (enquanto Nova York foi muito atingida, os serviços de emergência na Califórnia estão às moscas) e, por isso mesmo, sugerem que as medidas não devem ser as mesmas em lugares com situações tão distintas.

Talvez a entrevista tenha feito sucesso exatamente por mostrar de maneira calma e clara uma visão diferente da hegemônica, levando algumas pessoas a refletir sobre o assunto. Se isso oferece algum perigo para a sociedade é porque a tal visão hegemônica talvez seja tão frágil que não suporte o enfrentamento do contraditório. Ou, talvez ainda, por ela ter ficado cristalizada e não ter sido atualizada constantemente à medida que surgem novos dados da pandemia. Reforço que há uma diferença enorme entre difundir fake news e permitir a expressão de uma opinião contrária ao “pensamento hegemônico”.

Que triste momento para a ciência e a humanidade é este em que médicos são impedidos de dar opinião sobre a pandemia e o Tio Patinhas do mundo (com todos os seus conflitos de interesse!) é tratado como autoridade no assunto sem receber qualquer crítica dos médicos. Ainda bem que a aplicação da mordaça nesse caso teve efeito contrário e só fez crescer a curiosidade do público e as críticas à ciência. É que a boa ciência se alimenta exatamente do debate e da dúvida. As certezas “absolutas” apenas a fazem atrofiar, enquanto a censura a pode até matar.

https://altcensored.com/watch?v=vJprwe_rWeM