A primeira vítima do coronavírus

Diz a história[1] que no final de dezembro de 2019 um médico chinês estranhou o aparecimento de um tipo diferente de pneumonia viral em diversos pacientes e tentou alertar colegas em um grupo de internet para a possibilidade de estar ocorrendo um novo surto causado por um vírus semelhante àquele da SARS de 2003. Quatro dias depois, quando ele foi detido pela polícia local por “espalhar comentários falsos que poderiam causar perturbações sociais”, morria a primeira vítima da epidemia de coronavírus: a liberdade de expressão. O homem que fez a coisa certa e tentou alertar os colegas e as autoridades para salvar vidas acabou sendo tratado como uma ameaça, e a demora em admitir a epidemia pode ter sido fundamental para que o vírus se espalhasse pelos outros países. Entende-se quando um governo vigilante e controlador censura um profissional por tentar alertar os colegas para uma possível epidemia, mas fica difícil entender outros tipos de privação da liberdade de expressão.

Há quem considere a internet como altamente democrática. É verdade que se pode falar qualquer coisa, mas desde que ela esteja de acordo com a opinião aceita por quem controla a narrativa. Esta pandemia tem deixado bem claro que a internet é cada vez mais uma maneira de controle social do que um meio para a livre expressão de ideias. A maior empresa entre os gigantes da internet, o nosso Grande Irmão Google, tem desempenhado um triste papel censurando vídeos em sua plataforma YouTube. Com a alegação de proteger as “diretrizes da comunidade”, a plataforma tirou do ar várias entrevistas com profissionais sérios sob o pretexto de que não estavam em concordância com a visão da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a pandemia[2]. É um fato preocupante que tais empresas possam tirar do ar entrevistas com cientistas respeitados como John Ioannidis[3] ou Karol Sikora[4] simplesmente por apresentarem um ponto de vista diferente daquele da OMS. É um momento histórico bastante estranho este em que entrevistas de profissionais renomados são suprimidas por serem consideradas perigosas. Por sorte descobrimos que há sites especializados em divulgar vídeos censurados[5][6].

A censura praticada por governos autoritários e por grandes corporações privadas é facilmente compreensível, embora seja altamente lamentável. Muito mais difícil é compreender os vários tipos de censura praticados no próprio meio científico, já que a boa ciência se alimenta exatamente da dúvida e da discussão de pontos de vista diferentes. O tempo dirá se os questionamentos levantados por Ioannidis e outros cientistas são pertinentes ou não, e há vários outros casos de profissionais intimidados ou censurados por expressar posições contrárias à hegemônica[7][8]. O que chama a atenção é que esses ataques venham exatamente de dentro da própria comunidade científica e em um momento em que abundam dúvidas sobre praticamente todos os aspectos da pandemia[9]. Com tantas dúvidas ainda pendentes é difícil conceber que alguém possa ser perseguido ou censurado por expressar uma opinião diferente daquela defendida pela OMS.

Por exemplo, existe hoje um debate entre aqueles que defendem a manutenção do lockdown por questões de saúde e aqueles que defendem a sua suspensão gradual por entenderem que o lockdown também pode ser prejudicial à sociedade em vários aspectos, e é exatamente por haver dois pontos de vista diferentes sendo discutidos que poderemos chegar a uma solução equilibrada que contemple as duas visões. Suprimir qualquer dos dois lados pode ser prejudicial por desconsiderar que a crise atual, embora seja primariamente sanitária, também tem importantes implicações econômicas, sociais e políticas.

A ameaça atual à livre expressão de ideias e ao debate aberto das questões importantes no mundo é tão importante que a revista Harper’s recentemente publicou uma carta aberta[10] defendendo a liberdade de expressão assinada por gente das mais variadas tendências políticas e de diferentes áreas de atuação, incluindo nomes tão importantes como Noam Chomsky, Atul Gawande, Salman Rushdie, Francis Fukuyama, Eva Hoffman e Margaret Atwood, entre tantos outros. O que preocupa pessoas assim, deveria nos preocupar a todos.

A verdade é que o pouco que temos de certeza hoje é o que já sabíamos muito antes de esta pandemia começar: que higienizar bem as mãos diminui o risco de contaminação, que devemos manter uma certa distância de pessoas vulneráveis se apresentarmos sintomas respiratórios, que as pessoas mais velhas e doentes têm mais chances de morrer no caso de uma infecção respiratória e, fundamentalmente, que a liberdade de expressão é uma das maiores conquistas do mundo civilizado.


[1] https://www.bbc.com/news/world-asia-china-51364382

[2] https://www.businessinsider.com/youtube-will-ban-anything-against-who-guidance-2020-4

[3] https://undark.org/2020/06/11/john-ioannidis-politicization/?fbclid=IwAR2ko6W23H63v47pmBw5SSkrKNW2wRj8ySdhPK3uyg2gYejwU9-_Vgl4oI8

[4] https://unherd.com/thepost/professor-karol-sikora-fear-is-more-dangerous-than-the-virus/

[5] https://altcensored.com/

[6] https://banned.video/

[7] https://twitter.com/angie_rasmussen/status/1254957405432975360?s=20

[8] https://altcensored.com/watch?v=vJprwe_rWeM

[9] https://www.statnews.com/2020/04/27/hear-scientists-different-views-covid-19-dont-attack-them/

[10] https://harpers.org/a-letter-on-justice-and-open-debate/