Ascensão e queda da serotonina

Um recente artigo de revisão publicada na Nature[1] está tendo muita repercussão na mídia em função de uma revelação que para alguns é surpreendente, enquanto para outros é bastante inconveniente: não parece existir qualquer base científica robusta que sustente a ideia de que a depressão seja causada por algum desequilíbrio ou falta de serotonina no cérebro das pessoas. Basicamente o estudo demonstrou que as pessoas consideradas deprimidas não têm níveis mais baixos de serotonina que as pessoas normais. Além disso, os pesquisadores mostraram que reduzir os níveis de serotonina também não causa depressão nas pessoas.

Isso não significa que os chamados “antidepressivos” não sigam fazendo parte do conjunto de recursos de que dispomos para enfrentar o problema. Antes que todo mundo (e é muita gente!) abandone seus antidepressivos diários é preciso ressaltar que a própria pesquisadora principal do estudo – Joanna Moncrieff –, apesar de crítica ferrenha da psiquiatria medicalizante, insiste que ninguém deve abandonar de supetão o uso dos antidepressivos, embora este cuidado se deva mais aos possíveis efeitos colaterais dos medicamentos em longo prazo e ao risco de abstinência do que à perda de eventuais efeitos terapêuticos.

É interessante esclarecer que algumas pessoas realmente podem apresentar melhora temporária daquilo que chamamos de depressão ao usar esses medicamentos, talvez mais por seus efeitos psicoestimulantes do que por corrigirem algum suposto desequilíbrio da serotonina cerebral. Isto pode ser especialmente verdadeiro nas pessoas com quadros depressivos que cursam com maior apatia. De maneira análoga, já foi demonstrado que há pacientes com quadros de depressão ansiosa que podem melhorar bastante com o uso de benzodiazepínicos[2], que são medicamentos não habitualmente vistos como “antidepressivos”.

Para a prática médica, há três aspectos importantes em relação aos achados do estudo que merecem ser mais discutidos. O primeiro deles é que, a partir do momento em que fica demonstrado que a teoria da serotonina era um castelo de areia que já não se sustenta, as pessoas podem parar de enxergar os “antidepressivos” como medicamentos altamente eficazes que atuam diretamente na origem dos transtornos depressivos. Além disso, a mídia pode agora parar de cobrir esta classe de medicamentos como uma maravilha terapêutica, pois já foi bem demonstrado que esses medicamentos são eficazes apenas em uma minoria de pessoas[3]. Ainda mais importante é lembrar que a queda da teoria da serotonina pode nos ajudar a buscar outras formas de manejo para o problema que podem ser muito mais eficazes em longo prazo, o que pode incluir atividade física, psicoterapia ou o manejo das condições de vida que causam o humor depressivo.

Em segundo lugar está uma mudança no paradigma da depressão, trocando a visão baseada em neurotransmissores por um novo paradigma que reconheça o ser humano em todas as suas dimensões física, psíquica, intelectual, existencial e espiritual. Depois de décadas pensando em termos deste ou daquele neurotransmissor, podemos ampliar os horizontes do entendimento das doenças mentais e buscar explicações (e soluções) que atendam a todas essas dimensões, o que poderia incluir mudanças radicais em nossa sociedade cada vez mais individualista, materialista e altamente competitiva. Mais do que nunca, podemos agora refletir se são as pessoas que estão deprimidas ou se, por outro lado, é a nossa sociedade que está profundamente adoecida e deprimente.

Existe ainda um terceiro aspecto, um pouco mais técnico, e que ainda não foi adequadamente coberto pelas revisões em torno do estudo citado: a inexistência de uma teoria comprovada de desequilíbrio/falta de serotonina pode ter consequências importantes para a interpretação da “ciência” produzida em relação aos chamados “antidepressivos”. Adotando-se uma postura um pouco bayesiana, poderíamos supor que esta demonstração de inexistência do desequilíbrio/falta de serotonina reduziria bastante a “probabilidade pré-teste” dos estudos que avaliaram o uso desses medicamentos no tratamento da depressão. Assim, qualquer eventual resultado positivo teria uma menor chance de ser um resultado “verdadeiro-positivo”. Isso poderia explicar a discrepância entre os resultados dos estudos científicos e os resultados pífios desses medicamentos na vida real (sim, a verdade é que nunca vimos tantas pessoas tomando antidepressivos e, paradoxalmente, tantas pessoas ainda deprimidas). Isso também poderia levantar ainda mais dúvidas sobre a honestidade de grande parte da literatura médica baseada em estudos patrocinados pela própria indústria.

Enfim, o estudo de Moncrieff e colaboradores joga um balde de água fria na visão arrogante de que o fenômeno depressão pode ser explicado por uma molécula neurotransmissora e corrigido pela manipulação artificial dos níveis desta molécula. É importante observar que o fracasso dessa teoria já era evidente muito antes da publicação do estudo da Nature para qualquer observador minimamente perspicaz da sociedade. Porém, o maior ensinamento neste caso talvez seja a necessidade de sermos permanentemente céticos em relação a quaisquer novidades médico-científicas que tentem explicar ou corrigir problemas complexos com soluções simplistas, principalmente quando elas vierem recheadas de conflitos de interesses. Como alguém já disse: todo problema complexo tem sempre uma solução simples e equivocada.


[1] https://www.nature.com/articles/s41380-022-01661-0

[2] https://www.karger.com/Article/Fulltext/486696

[3] https://www.bmj.com/content/378/bmj-2021-067606

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