Nós e nossas circunstâncias

Há pouco mais de cem anos, Ortega y Gasset cunhava uma das frases mais significativas do pensamento universal ao declarar que “Eu sou eu e minhas circunstâncias”. Para muitos, a ideia exposta em suas Meditaciones del Quijote pode ter a mesma importância do “Penso, logo existo” cartesiano, em parte por versarem sobre o mesmo tema – a possibilidade de existir um “eu” – e, em parte, por ser um tipo de complementação da famosa frase de Descartes. Não existimos em um vácuo e, por isso mesmo, não é possível haver um eu individualizado se ele não for delimitado por tudo que o rodeia e, de certa forma, o define: as suas circunstâncias. Ortega y Gasset define essas circunstâncias como um conjunto de coisas mudas que estão à nossa volta e que podem passar despercebidas aos nossos olhos. E assim, com o olhar focado em projetos distantes e intangíveis, ficamos cegos para o que há de mais concreto bem à nossa volta.

A crise atual pode ser exatamente um reflexo dessa nossa cegueira para essas circunstâncias terríveis que já nos rodeavam há muito tempo. De alguma forma, agora está claro que as circunstâncias que estavam bem debaixo de nossos narizes eram bem piores do que imaginávamos. Nossos governantes eram imensamente menos competentes do que supúnhamos. Nossos sistemas de saúde, em que pese a dedicação quase heroica dos profissionais diretamente envolvidos, não tinham como atender a um aumento tão grande na demanda por cuidados. Nossos medicamentos maravilhosos, nos quais depositávamos tanta esperança quando não estávamos nem mesmo doentes, não mostraram nenhum efeito concreto quando adoecemos de verdade e precisamos deles. Isso tudo sem falar na desigualdade social gritante, no descaso com que vínhamos tratando nossos velhos e em nossa incapacidade de agir de maneira solidária como uma nação unida. A crise escancarou uma realidade que tentávamos disfarçar como quem evita cruzar o olhar com um mendigo na rua.

O aprendizado que podemos tirar disso tudo – se formos suficientemente sábios – pode nos ajudar a evitar ou minimizar os impactos de eventuais novas crises, uma vez que a atual parece, em grande medida, já estar definida. O próprio Ortega y Gasset nos apresentou a solução quando escreveu a continuação de sua famosa frase: “Eu sou eu e minhas circunstâncias, e se não salvo a elas, não me salvo a mim”.  É evidente que sempre estaremos vulneráveis a todo tipo de crise enquanto estivermos cegos para as nossas verdadeiras circunstâncias e enquanto não fizermos de tudo para melhorá-las. Seria bom lembrarmos que as nossas circunstâncias acabam por definir quem realmente somos. E se toleramos níveis absurdos de desigualdade, incompetência e desumanidade bem à nossa volta, é porque, no fundo, é assim que somos.