A alma e o espírito humano

Nossa alma é muitíssimo antiga, a ponto de algumas pessoas a considerarem eterna. Acreditamos que ela de alguma forma nos dê vida, mas pouco sabemos sobre ela. Nem mesmo sabemos se nossa alma é individual ou se toda a humanidade – ou mesmo a totalidade das criaturas do universo – compartilha da mesma alma, como se ela representasse um tipo de alma do mundo (anima mundi). Independentemente dessas incertezas, atribuímos a esta alma características muito positivas, o que faz com que nos sintamos profundamente ofendidos ao sermos considerados “desalmados”. Viver sem uma alma não parece nada bom, até mesmo para quem não acredita na sua existência.

Já o espírito humano é um construto coletivo diretamente ligado ao espírito de cada época ou zeitgeist. Uma das maneiras de entender este espírito humano é como sendo o fenômeno coletivo de tudo que os homens conhecem, fazem e desejam em consequência de seu raciocínio abstrato e conceitual. Aqui se poderia incluir coisas como a linguagem, a arte, as tecnologias e a evolução das tradições, as quais mudam ao longo do tempo e fazem com que o espírito humano não seja o mesmo em todas as épocas. Pelo contrário, o espírito humano pode mudar rapidamente. E isso pode ser um problema sério para a humanidade.

Para o austríaco Konrad Lorenz, há uma evidente desproporção na velocidade com que mudam o espírito humano – representado pelas tecnologias e hábitos da vida moderna – e a alma do homem, a qual é praticamente a mesma de nossos antepassados mais remotos. E tal descompasso é um prato cheio para o surgimento das mais variadas doenças mentais. Lorenz via com certo otimismo que cada vez mais pessoas padeciam de males como ansiedade e depressão, pois entendia que isso significava que ainda havia pessoas que resistiam contra a desumanização da sociedade. Para ele, o homem está se adaptando paulatinamente a um novo mundo contra o qual a reação mais correta seria a revolta e a indignação. De certa forma, aquelas pessoas que nos parecem normais atualmente talvez sejam as pessoas realmente doentes, em vez daquelas que se recusam a aceitar a desumanidade do mundo atual e que sofrem por causa disso.

Segundo o autor, é um erro crasso acreditar que nossa evolução tenha algum objetivo final pré-estabelecido, como se fosse apenas uma questão de tempo até alcançarmos a “humanidade perfeita”. Pelo contrário, ela é imprevisível e há vários exemplos de espécies e de civilizações avançadas que desapareceram. Isso aumenta muito a nossa responsabilidade atual. Se a desumanização crescente do mundo parece adequada para o espírito humano atual, é simplesmente porque este espírito humano sofre de uma doença grave e endêmica. E esta é uma doença autoinfligida, já que somos apenas nós mesmos que temos toda a responsabilidade pelas decisões que tomamos. As ideias de Lorenz foram escritas ainda na década de 1980. Talvez ele não demonstrasse o mesmo otimismo se as escrevesse atualmente. É evidente que a desumanização da sociedade avançou exponencialmente nesse período e, curiosamente, seguimos placidamente aceitando que assim seja, como se nosso destino já estivesse escrito nas estrelas ou em algum algoritmo secreto e como se não tivéssemos total responsabilidade e liberdade em relação a nossas escolhas. Nossa necessidade de mudar de rumo nunca foi tão urgente.  

É estranho que a mesma sociedade que reconheceu a importância dos estudos de Lorenz sobre o comportamento do homem e dos animais conferindo-lhe um Prêmio Nobel, siga fazendo o contrário do que ele recomendava e cometendo os mesmos erros para os quais ele já alertava. Nos afastamos cada vez mais da natureza e das outras pessoas, e aceitamos continuar sendo escravizados pela tecnologia que atua em nome do lucro de um punhado de magnatas. Até que ponto nossa suposta maior capacidade intelectual tem nos ajudado é uma incógnita, mas Lorenz gostava de frisar que, sob o ponto de vista da evolução biológica, as chances de sobrevivência futura de um paramécio são muito maiores que as do homem moderno. Na época de Lorenz, a principal ameaça era a energia nuclear. Hoje somos tiranizados pela tecnocracia capitalista. A tecnologia viciante e o capital escravizante nos transformaram em zumbis e acreditamos estar evoluindo. Estamos é demolindo o humano que ainda havia em nós.