A medicina descartada

Existe uma expressão que diz que não devemos “confundir a árvore com a floresta”. Isso significa que temos uma tendência a ficarmos envolvidos com os detalhes de algo pequeno a ponto de não conseguirmos enxergar a coisa por inteiro que se esconde por detrás e ter uma real compreensão da situação. Em momentos assim, é necessário olhar através das árvores para enxergar a floresta ou, ainda melhor, nos afastarmos um pouco para que se possa mudar nosso ponto de vista e obter uma visão mais completa de todo o quadro. E, na medicina atual, isso não é diferente.

Temos sido diariamente bombardeados na literatura dita científica – e ainda mais na mídia leiga – pelos feitos notáveis que as novas tecnologias estariam alcançando no âmbito da medicina e dos cuidados de saúde. É assim que ficamos sabendo que a IA seria mais empática que os médicos de carne e osso[1], que uma determinada tecnologia do Google já poderia diagnosticar doenças analisando apenas o ruído da tosse da pessoa[2] ou que máquinas de psicoterapia virtual poderiam ser tão boas quando profissionais de verdade[3]. Pouco importa se essas comparações são feitas em estudos eivados de conflitos de interesse e em ambientes virtuais que em nada se assemelham ao ambiente físico de trabalho dos médicos, importando apenas que tal narrativa falsa seja incansavelmente transmitida ao público.

O que nos custa enxergar é que esta narrativa falaciosa criada por trás de todas essas pequenas notícias plantadas na mídia e que costumam reverberar estudos clínicos de qualidade duvidosa patrocinados exatamente pelas empresas de tecnologia que lucrariam com a sua implantação mais ampla na medicina poderia ter como objetivo principal a retirada do poder que os médicos ainda detêm na área dos cuidados de saúde. Em tal narrativa, as tecnologias de IA podem não apenas ser úteis como aliadas, mas também substituir o profissional humano. O problema é que os profissionais de saúde, cada vez mais assoberbados com milhares de estudos de gosto duvidoso e com afazeres que crescem a cada dia apesar de todas as promessas dos arautos da tecnologia sobre a redução de sua carga de trabalho, não conseguem dispor do tempo necessário para se afastar a fim de enxergar e refletir adequadamente sobre a situação que se cria.

Embora não o percebam com facilidade, os médicos ainda são extremamente poderosos, necessários e importantes para a sociedade, tendo não apenas o poder de amenizar o sofrimento das pessoas e de definir suas doenças e tratamentos, mas também – quando se propõem a fazê-lo em nome do bom senso, da integridade da medicina e da sustentabilidade dos sistemas de saúde – de se negar a prescrever tratamentos clinicamente irrelevantes e/ou desproporcionalmente caros a ponto de ameaçar os recursos do sistema como um todo, de apontar delineamentos tendenciosos e/ou conflitos de interesses gritantes nas pesquisas clínicas que minam a credibilidade da ciência e de defender com unhas e dentes a saúde das pessoas e a própria existência da atividade médica contra os poderosos interesses que a ameaçam.

Sendo assim, nada mais natural que aquelas corporações que lucram fortunas com a venda de produtos e serviços de relevância duvidosa e custos exorbitantes tentem cada vez mais reduzir a importância dos médicos de carne e osso em todo o processo de decisão e prestação dos cuidados de saúde. Aqui se pode incluir a indústria farmacêutica e de dispositivos médicos, as grandes empresas de tecnologias digitais e os grandes conglomerados de operadoras de saúde, entre outros atores importantes. Para tais corporações, nada facilitaria mais o livre comércio de seus produtos e serviços – muitas vezes inúteis, potencialmente prejudiciais e desnecessariamente caros – do que tirar dos médicos seu papel fundamental como gatekeepers na área dos cuidados de saúde.

E esta não é, infelizmente, um realidade distópica ou distante. Já temos vários exemplos de iniciativas que tentam apequenar a importância dos médicos e contornar o escrutínio adequado de um profissional de carne e osso. Isso já ocorre, por exemplo, quando a indústria que produz as famigeradas “canetas que emagrecem” desenvolvem mecanismos para a sua venda direta aos consumidores por meio de sites próprios na internet[4] ou quando se propõe que os assistentes virtuais do tipo Alexa estejam presentes em todos os lares com tecnologia de IA que permita que façam diagnósticos e sugiram tratamentos sem a necessidade de que um médico seja consultado[5].

Haverá quem possa considerar essa ideia como “apenas mais uma grande teoria conspiratória”, mas talvez seja uma ingenuidade ainda maior imaginar que essas megacorporações que faturam fortunas indecentes na área da saúde e que têm como interesse primordial a obtenção de ganhos astronômicos para seus sedentos acionários possam aceitar um papel secundário para seus produtos e serviços de modo que fiquem a mercê da análise ponderada dos médicos. Em vez disso, a ideia é claramente faturar o máximo e o quanto antes. E, se os médicos de carne, osso e algum discernimento estiverem no meio do caminho, que sejam rapidamente removidos.

Cada estudo publicado ou manchete sensacionalista compartilhada é como se fosse mais uma pequena peça na falaciosa narrativa de que as máquinas podem substituir profissionais de carne e osso sem prejuízo para a medicina e a saúde da população. Em vez de analisarmos cada estudo individualmente – “as árvores” – devemos tentar enxergar a narrativa que está sendo aos poucos criada – “a floresta”. Desgraçadamente, já não nos basta apontar erros, falhas metodológicas ou conflitos de interesse nos estudos publicados sobre o tema, sendo necessário que a medicina desperte do torpor atual e defenda de fato os interesses de médicos e pacientes construindo uma contranarrativa à altura da ameaça percebida. É claro que essa reação passa também pelo tratamento mais humano de cada paciente, a fim de que nossa superioridade em relação às máquinas seja facilmente percebida. Está mais do que na hora de os médicos se unirem em torno da defesa da boa medicina e da saúde dos pacientes. A continuarmos neste silêncio ensurdecedor, seremos descartados e substituídos por máquinas antes de o percebermos.


[1] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/article-abstract/2804309

[2] https://www.nature.com/articles/d41586-024-00869-0

[3] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/fullarticle/2794818

[4] https://www.forbes.com/sites/maryroeloffs/2024/01/04/pharmaceutical-first-eli-lilly-website-will-prescribe-weight-loss-drugs-through-service/?sh=f4b7b0315a85

[5] Lee, P.; Golderg, C.; Kohane, I. A revolução da inteligência artificial na medicina: GPT-4 e além. Porto Alegre: Artmed, 2024.