Sobre resistir e re-existir

No distante século XVII, Blaise Pascal, ao falar sobre a miséria humana, alertava para o perigo de nos distrairmos e de nos esquecermos de enfrentar a nossa própria miséria quando dizia em seus Pensamentos que “a única coisa que nos consola de nossas misérias é a diversão e, contudo, esta é a maior de nossas misérias, porque nos impede de pensar em nós mesmos e nos faz perder-nos sem que o percebamos. Sem a diversão ficaríamos entediados, e este tédio nos impulsionaria a buscar uma maneira mais sólida de sair dessa situação de miséria. Porém, a diversão nos distrai e nos leva até a morte sem que nos demos conta disso”. Pascal já sabia que quando deixamos de enfrentar os fatos e as causas de nossa miséria, estamos perdendo a chance de resolver os nossos verdadeiros problemas e de melhorar de maneira mais efetiva a nossa condição humana.

Se transportarmos essa crítica para a realidade de nosso século XXI, fica fácil notar que não é apenas a diversão que nos pode distrair da busca por uma vida melhor. Em nosso mundo agitado em que todo tipo de sofrimento é visto como prejudicial, qualquer tipo de dor é evitado e toda angústia existencial é logo aplacada com medicamentos. Pessoas tristes ou frustradas com sua situação de vida podem facilmente receber prescrições de antidepressivos antes mesmo de qualquer psicoterapia ou tentativa de analisar com profundidade a própria situação e, assim, podem estar perdendo a oportunidade de perceber e reverter as causas básicas de suas angústias (empregos ruins, relacionamentos problemáticos, etc.), seguindo pela vida afora frustradas e sedadas. Ao se tentar evitar um sofrimento, acabamos muitas vezes por prolongá-lo pela vida toda.

Ocorre que o sofrimento pode ser a mola propulsora de uma mudança necessária. No século XX, Victor Frankl chamou a atenção para a importância de darmos algum sentido para nossos sofrimentos, o que pode não apenas aumentar nossa resiliência pessoal como também servir de impulso para as mudanças definitivas necessárias em nossas vidas. Frankl foi prisioneiro em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, tendo perdido toda a família durante os anos em que passou como prisioneiro de guerra. Nem por isso esmaeceu a sua vontade de viver e de encontrar um sentido para todo aquele sofrimento. Boa parte de suas teorias que deram origem à logoterapia (uma forma de psicoterapia baseada na busca de sentido) parecem ter nascido durante essa época.

Para alguém que esteja sofrendo agudamente em um campo de concentração, com a morte à espreita diariamente, pode ser mais fácil valorizar a própria vida e perceber a importância de encontrar um sentido para ela. O problema é que em nossas vidas ordinárias de homens comuns isso pode passar completamente despercebido. Perdidos em nosso labirinto de tecnologias, compromissos e medicamentos não vemos o principal: que estamos cada vez mais vulneráveis e nossas vidas estão cada vez mais vazias de sentido. Muitos de nós só percebemos isso quando nos aproximamos do final da vida, quando talvez já seja tarde demais para qualquer mudança de rota. Assim, a importância de conhecer as ideias de pensadores tão diferentes como Pascal e Frankl é que elas nos podem iluminar desde cedo e fazer com que busquemos um sentido enquanto ainda é tempo de fazê-lo.

Embora ninguém deva sofrer desnecessariamente, é importante reconhecer que a vida é cheia de sofrimentos, e que tentar evitá-los a todo custo acaba por nos enfraquecer e evitar qualquer chance de crescimento pessoal. Alguém que esteja sofrendo por determinada situação difícil (como a insatisfação no emprego ou relacionamento) pode ter toda a razão em sofrer. Transformar artificialmente este sofrimento em doença e medicá-lo – sem abordar as suas causas básicas – pouco ajudará essa pessoa a vencer as dificuldades. Essa superação só será possível se o sofrimento for legitimado e se algum sentido for a ele atribuído. Se resistir significa aceitar e suportar o grau de sofrimento que nos cabe a cada um, re-existir é mais do que isso, é experimentar uma nova forma de existência em que nos tornamos mais fortes e melhores.