A arte de enxugar gelo

O enxugamento de gelo é um procedimento bem conhecido de toda gente. É do tipo de atividade para quem deseja sempre ter o que fazer e é pouco ambicioso, já que ele nunca termina e em nada resulta a longo prazo. Para muitos, trata-se do cúmulo da inutilidade. Usamos a expressão “enxugar gelo” para nos referirmos a alguém que insiste em tentar resolver um problema sem abordar as suas causas básicas. E isso pode ter muito a ver com a medicina e a forma como tratamos vários problemas atualmente na sociedade. Pode-se considerar que o papel do médico clínico é diferente daquele do profissional de saúde pública, mas se essas funções não forem de alguma forma complementares e sinérgicas, viveremos um eterno enxugamento de gelo.

Enxugamos gelo na medicina toda vez que tentamos resolver um problema clínico sem nem ao menos tentar descobrir e eliminar as suas causas básicas sempre que isso for possível. Alguém dirá que mesmo que não se aborde as causas básicas de uma doença, é necessário minimizar os sintomas ou aplicar algum tipo de tratamento paliativo e é a mais pura verdade: nós médicos precisamos aliviar o sofrimento das pessoas sempre que isso for possível e antes de qualquer outra coisa. Mas isso pode acabar fazendo com que esqueçamos de abordar as causas básicas e, em um nível sistêmico, fazendo com que o problema persevere na sociedade e nunca acabemos com ele de verdade. E há vários exemplos disso.

Vivemos em uma sociedade altamente sedentária e que insiste em se alimentar da pior maneira possível, com alimentos ultraprocessados em quantidade muito maior que o necessário para a nossa subsistência. Não que as pessoas façam isso deliberadamente. Em geral, isso é resultado de um sistema que privilegia a inércia física e o consumo de refeições rápidas com alimentos de péssima qualidade nutricional, os quais costumam ser mais acessíveis para a população. E isso ocorre desde a mais tenra idade. É neste contexto que gastarmos fortunas com tratamentos caríssimos e de efeito duvidoso em longo prazo contra a obesidade pode ser comparado ao enxugamento de gelo. Isso pode até melhorar temporariamente o problema em nível individual para as poucas pessoas que podem pagar pelo custo indecente de um tratamento contínuo contra a obesidade, mas acaba sendo absolutamente inútil em nível de sociedade, além de nos afastar daquilo em que realmente deveríamos nos concentrar: realizar as mudanças necessárias na sociedade para reduzir a carga de obesidade na população.

Algo parecido poderia ser dito sobre a fortuna que gastamos em tratamentos quimioterápicos contra o câncer enquanto não progredirmos de verdade na análise aprofundada e eventual mitigação ou banimento de inúmeros fatores ambientais cancerígenos que podem estar mantendo os casos da doença nas alturas. Isso pode incluir inúmeras substâncias cancerígenas usadas na produção e embalagem de alimentos, a poluição do ar pelos motores a combustão e a contaminação da água por dejetos industriais.  O mesmo pode ser dito sobre o nosso modo de vida moderno extremamente competitivo e desumano que acaba criando uma multidão de casos de doença mental em suas formas mais variadas (depressão, ansiedade, psicose, etc.). Gastar fortunas com medicamentos psiquiátricos usados na vã tentativa de aplacar um sofrimento que é em grande medida existencial sem as devidas transformações na sociedade talvez não passe de um belo enxugamento de gelo.

Que não me interpretem de maneira apressada. Bem sei que o tratamento sintomático que visa mitigar as consequências de nosso estilo de vida moderno sobre a saúde é necessário e muito louvável em nossa prática clínica diária. Porém, este cuidado que administramos em uma das extremidades do sistema de saúde passa a ser um mero enxugamento de gelo quando nos esquecemos de agir – como profissionais e como sociedade – sobre os problemas básicos que causam essas doenças na outra ponta do sistema, perpetuando as doenças e reduzindo a nossa capacidade real de aplacarmos o sofrimento das pessoas. Assoberbados por estatísticas e esmagados por condições de trabalho cada vez mais difíceis é muito fácil nos limitarmos a enxugar gelo e nos esquecermos de que precisamos de alguma forma agir sobre as causas básicas das doenças. Isso se nosso objetivo for, de fato, reduzir a carga de doença na sociedade, pois há quem lucre muito com essa arte de enxugar gelo.