O fim do Homo placens

Todos nós que já fomos pais ou filhos sabemos qual é o melhor remédio para todo tipo de doença ou machucado: algum tipo de combinação do colo da mãe com um beijo do pai. Qualquer que seja o mal, eles estão sempre ali por perto, e nos acostumamos a recorrer a isso desde nossa mais tenra infância. Às vezes essa combinação era reforçada por uma água com açúcar e o efeito era mesmo imediato. Mal engolíamos o doce remédio e já estávamos nos sentindo melhor. Hoje em dia conhecemos esse verdadeiro milagre pelo nome técnico de efeito placebo, e a própria medicina o reconhece e tira proveito dele, seja ao utilizar os placebos para ajudar as pessoas ou ao usá-los como comparação ao analisar os remédios que podem ter algum efeito farmacológico adicional. Neste último caso, os medicamentos testados têm de se mostrar significativamente melhores que os placebos nos testes para que sejam considerados efetivos.

O nome placebo tem origem no latim e deriva do verbo placere que significa “agradar”. Conjugado no futuro, placebo significaria algo como “eu agradarei”. Nesse sentido, o Homo placens seria o ser humano que agrada ou que deseja agradar. Os placebos em medicina podem ser os mais variados, como comprimidos de farinha, injeções de água destilada ou simulações de procedimentos invasivos. Há uma diferença conceitual entre efeito placebo e resposta placebo, isso porque o efeito benéfico deriva apenas em parte do comprimido de farinha, pois há outros fatores que também ajudam as pessoas a melhorar, como a passagem do tempo ou o fenômeno de regressão para a média. Porém, na prática chamamos a esta verdadeira mágica de efeito placebo.

Acredita-se que o efeito placebo dê início a processos de autocura presentes no próprio paciente. Um dado muito importante é que existem fatores que potencializam este efeito placebo, entre eles uma boa relação médico-paciente. Assim, o efeito placebo parece ser mais significativo – e, consequentemente, maior é o benefício para o paciente – quando o medicamento é prescrito por um médico em quem o paciente confia. A questão da confiança é tão importante que já foi demonstrado[1] que os pacientes podem melhorar mesmo sabendo que estão tomando um placebo inerte. Além disso, é importante observar que a presença de uma mente consciente de estar tomando um medicamento ou placebo é fundamental para que o efeito exista. Isso talvez explique parcialmente a dificuldade de se encontrar tratamentos clinicamente úteis para doenças neurodegenerativas como a doença de Alzheimer (onde há comprometimento das regiões pré-frontais do cérebro) ou até mesmo a ausência do efeito placebo em situações em que os pacientes estão inconscientes (como nos pacientes anestesiados ou sob sedação na UTI).

É interessante notar que as situações em que o efeito placebo atua são as mais variadas. Sabe-se que eles são muito úteis como analgésicos em diversas condições clínicas e que em algumas situações, como na dor crônica causada por osteoartrite[2], o efeito placebo pode ser responsável por 75% do efeito terapêutico total de um medicamento, o que é muito significativo. Fenômeno semelhante ocorre com várias doenças, desde transtornos psiquiátricos até síndromes de dor crônica, como a síndrome do intestino irritável, a fibromialgia e a enxaqueca. Um aspecto importante é que o efeito placebo não ocorre apenas em doenças que podem ter um componente psicossomático significativo, sendo visto até em condições bem objetivas como na obstrução das artérias coronárias. Um interessante estudo[3] recente separou os pacientes com obstrução coronariana em dois grupos: um deles recebeu angioplastia e colocação de stent, enquanto o outro passou apenas por uma “simulação de angioplastia”. O que surpreendeu muita gente é que, quando avaliados várias semanas após a intervenção, não havia qualquer diferença entre os grupos em termos de recorrência da angina ou de resistência física nos testes de esforço objetivos.

Hoje se discute o caráter ético da administração de medicamentos inertes ou placebos aos pacientes, e a tendência é de considerar tal conduta como inadequada. Mas a situação pode ficar complicada quando não há um tratamento específico cientificamente comprovado para determinada situação. Nesses casos, podemos ficar paralisados pelo rigor científico ou optar pelo uso de um placebo ou medicamento inerte que poderia fazer parte do ritual de cura, respeitando o princípio hipocrático do primum non nocere. Se considerarmos que os benefícios do efeito placebo já estão bem comprovados cientificamente em relação ao não uso de nenhum medicamento, talvez a questão ética esteja resolvida e basta que lembremos de que nossa principal missão como médicos é ajudar as pessoas a melhorar sua saúde e minimizar o seu sofrimento.

Talvez devamos lembrar de nossa natureza humana e de nossa necessidade de receber algum tipo de conforto e esperança quando nos percebemos doentes. Algumas vezes a questão mais importante não é saber se um medicamento é mais efetivo que um placebo, mas, sim, saber se a administração de alguma coisa pode ser mais efetiva do que não administrar nada e perder a chance de iniciar o processo de autocura no paciente. E, na maioria das vezes, a nossa condição humana nos mostrará que sim. É que gostamos de ser agradados e nos desesperamos facilmente ao enfrentar uma doença e a possibilidade de morte. É nessas horas que precisamos de um Homo placens do nosso lado.


[1]https://www.bmj.com/content/363/bmj.k3889?ijkey=bb1e19c001c449c115e964e7b711eb26ee43dda0&keytype2=tf_ipsecsha

[2]https://www.bmj.com/content/370/bmj.m1668?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_term=hootsuite&utm_content=sme&utm_campaign=usage

[3]https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(17)32714-9/fulltext