Nós, os tecnossauros

Sempre tive um grande interesse pelas novas tecnologias. Talvez porque tenha tido contato com elas muito cedo. Meu pai tinha uma curiosidade enorme e era um grande entusiasta dessas novidades tecnológicas. Me lembro de quando meu pai chegou em casa com nosso primeiro computador. Era o início da década de 1980 e certamente era um dos primeiros computadores da cidade. Bom… era “quase” um computador se o compararmos com os atuais, mas era o máximo que existia na época. Era um modelo CP-200 recentemente lançado pela empresa brasileira Prológica e se resumia a um teclado sem monitor, o qual deveria ser ligado a um aparelho de TV. É claro que na época os aparelhos de TV ainda eram rudimentares e sem muita cor ou definição. Na verdade, a única cor evidente ali era a carcaça de cor amarelo vivo daquela pequena TV Philco em preto e branco.

Os programas de computador existentes tinham que ser gravados em fitas cassete em um pequeno gravador acoplado ao computador. Na verdade, muitos programas tinham que ser feitos por nós mesmos. Aprendíamos alguma coisa das linguagens de computação da época, como Basic, Cobol e outras que já nem lembro. Mas as possibilidades eram muito restritas. Ficávamos abismados quando víamos a propaganda de uma determinada marca de café na TV onde um computador escrevia do alto até a parte inferior da tela a mesma frase repetidamente como se respondesse ao interlocutor sobre qual era o melhor café. Aquilo parecia um grande avanço, e tentávamos recriar o feito em nosso computador através de um programa que nós mesmos tínhamos que inventar. E assim seguíamos confiantes e valentes em nosso novo papel de programadores: “1 = ‘café solúvel granulado’; 2 = 1 GOTO 20; 3 = RETURN; etc.”. E ficávamos muito felizes quando conseguíamos dar um “enter” e encher a tela do computador com aquela frase idiota.

Depois vieram os outros computadores da casa. Primeiro foi o CP-500, o qual já tinha “cara de computador”. Parecia pesar meia tonelada e a tela era bem pequena e em preto e branco (na verdade em preto e verde, mas era o que havia de melhor na época). Depois apareceram pelo mundo afora e lá em casa mesmo os computadores da IBM, e a própria Microsoft entrou em cena com seus primeiros softwares e seu sistema operacional inovador para a época, o MS-DOS. Nessa época também foram criadas as primeiras interfaces gráficas interessantes e as telas dos computadores ficaram mais atraentes. Eram outros tempos e as possibilidades da informática eram muito limitadas. Mais importante era o fato de que nossa relação com a informática era bem diferente. Tínhamos um papel ativo, escolhíamos o que fazer e éramos estimulados a criar as coisas que imaginávamos.

Pouco depois surgiram a própria internet e, com ela, os primeiros navegadores e buscadores da internet. Muito antes do Google aparecer e tomar conta do mercado, usávamos diversos outros buscadores, e entre eles o AltaVista era um dos melhores, fornecendo acesso a notícias, letras de música e informações variadas. Também havia editores de texto muito antes de surgir o Office da Microsoft. Um dos editores de texto mais famosos dessa época era o Carta Certa, um software totalmente nacional. O nome era péssimo, a interface gráfica era ainda pior, mas com ele podíamos fazer os trabalhos da escola ou da faculdade e criar os textos mais variados. Aliás, nessa época a nossa criatividade superava de longe aquela das máquinas e éramos nós que de certa forma ainda ditávamos o ritmo do progresso tecnológico.

A história que aconteceu depois disso todo mundo conhece. Algumas poucas pessoas se transformaram em multimilionários por meio de um misto de criatividade, esperteza e monopólio, enquanto a maioria da população acabou aos poucos se adaptando – como sempre fazemos – às novidades crescentes da tecnologia, as quais foram paulatinamente ocupando cada vez mais espaço em nossas vidas, até o ponto em que nos parece impossível sobreviver sem elas. Paralelamente ao aumento das possibilidades dessas ferramentas tecnológicas, passamos a ficar cada vez mais passivos. Hoje em dia fazemos tudo através de computadores e programas que pouco compreendemos. Diferentemente daquela época em que tínhamos que criar nossos próprios programas, agora tudo já vem pronto e geralmente funcionando bem. Mas a verdade é que nunca fomos tão estupidamente dependentes da tecnologia como hoje. Imaginar algum tipo de blackout nos programas, redes de celular ou na própria internet é um dos piores pesadelos possíveis para a humanidade atual.

Após estes 40 anos de envolvimento com essas tecnologias, algumas coisas causam apreensão. A primeira é essa nossa dependência emocional e instrumental em relação à tecnologia, o que nos leva a ter dificuldade em imaginar passar algum tempo distantes dela. A segunda é a nossa passividade extrema em relação às tecnologias, o que nos leva a aceitar sem maiores questionamentos tudo o que surja de novo no horizonte tecnológico. Além disso, enquanto observo as novas tecnologias gradualmente roubando empregos nas áreas mais diversas e chegando à própria medicina, é impossível não questionar se estamos no caminho certo enquanto humanidade. Talvez isso seja diferente para quem tenha nascido já na era da internet, mas a verdade é que alguém que cresceu tomando banho de chuva enquanto corria pela rua dificilmente trocaria essa experiência pelo mais avançado game da atualidade. Não se trata de algum deles ser melhor ou pior, é apenas a constatação de que temos pontos de vista e comparadores diferentes. A geração mp3 provavelmente terá dificuldade em entender a emoção de largar a agulha sobre o disco na vitrola exatamente sobre o início da faixa desejada.

Os defensores da tecnologia dizem que ela facilita a nossa vida, mas não acredito que a vida da maioria das pessoas esteja mais fácil hoje do que nas décadas anteriores. Sim, posso pagar um boleto bancário com um clique ou reservar um hotel no Suriname a qualquer momento, mas não acredito que isso seja fundamental ou que a vida humana se restrinja a isso. Também não tenho certeza de que uma vida fácil seja exatamente o nosso ideal de vida. Queremos viver bem e ser felizes, mesmo que tenhamos que lutar por isso e passar algum trabalho. Os defensores da tecnologia argumentam que ela liberou muito tempo para as pessoas, mas tenho imensa dificuldade em encontrar todo esse tempo que dizem que economizamos. Vejo pessoas sempre apressadas e sem tempo para as coisas mais básicas como comer, dormir e amar. Os defensores da tecnologia falam que ela teria trazido uma economia enorme de recursos para a humanidade, mas vejo a humanidade consumir o planeta como nunca e as pessoas gastando fortunas para comprar ou renovar seus computadores, telefones celulares e assinaturas de serviços virtuais diversos. Além disso, a simples existência de inúmeros bilionários que enriqueceram com a tecnologia nos deveria levar a questionar se realmente economizamos ou apenas transferimos fortunas para o bolso de um punhado de espertalhões. Os defensores da tecnologia defendem até mesmo o seu uso cada vez maior na medicina, mas quem defende tal coisa nada entende de medicina e não percebe que, apesar de estarmos cada vez mais “tecnológicos”, nunca estivemos tão doentes.

Enfim, criamos uma sociedade altamente tecnológica e que, apesar de todas as promessas de benefícios trazidos por essa tecnologia, está cada vez mais infeliz, empobrecida, doente e sem tempo para viver uma vida plena. Algo parece ter dado errado, exageramos na dose e criamos aqui um grande paradoxo. Se analisarmos cada nova tecnologia, ela realmente parece ser útil e ajudar em determinados aspectos pontuais de nossa vida. Porém, ao analisarmos o conjunto da sociedade e das tecnologias, o excesso tecnológico parece estar nos prejudicando imensamente. É bem possível que o apelo em defesa do excesso tecnológico nos tenha desviado de nossos ideais mais elevados e de nossas origens ancestrais, atrofiando progressivamente o que havia de mais humano em nós. O ótimo Konrad Lorenz diria que fomos “tiranizados pela tecnologia” e agora estamos “demolindo o homem” que havia em nós. Na verdade somos como uns tecnossauros em franco processo de extinção querendo ser altamente tecnológicos, mas esquecendo que nosso DNA e toda a nossa cultura se baseiam em valores ancestrais que jamais deveríamos abandonar sob pena de nos autodestruirmos e desaparecermos do planeta. Erro 404!