O Museu das Coisinhas Minúsculas

Aquela era a maior novidade em muitos anos na cidade. Finalmente seria inaugurado um museu e as pessoas poderiam se deliciar com as obras de arte ali expostas. Porém, aquele não era um museu qualquer, era o Museu das Coisinhas Minúsculas (MCM). Inicialmente, o nome causou certo espanto e curiosidade nos moradores da cidade, mas logo essa sensação foi substituída pela alegria de – finalmente – terem um museu para chamar de seu. Após muitos anos de pleito dos moradores, a hora estava chegando. O alvoroço causado pela mídia fez com que a cidade inteira comparecesse à inauguração do MCM. De início os moradores acharam estranho ver coisinhas minúsculas penduradas nas paredes e acompanhadas por um pequeno cartaz que descrevia a obra em questão. Era possível ler o cartaz que descrevia a obra, mas a obra em si era absolutamente invisível aos olhos. Mesmo com uma lupa poderosa, não se via mais do que um pontinho preto minúsculo. Ainda assim, os artistas e – principalmente – os donos do museu andavam para lá e para cá muito orgulhosos de sua exposição. Nunca na história da arte se tinha faturado tanto com uma exposição que ninguém conseguia enxergar. Enquanto isso, as pessoas andavam de um lado para o outro olhando para aqueles minúsculos pontinhos pretos indecifráveis. Alguns achavam bem lá no fundo que tinham sido enganados, mas ficavam constrangidos de se manifestar devido ao evidente sucesso de público do evento, às críticas positivas dos jornalistas e ao ar de superioridade demonstrado pelo meio artístico.

A inauguração corria muito bem até que o maluco da cidade resolveu entrar no museu, já que toda a cidade lá estava. Ao olhar para aquelas paredes vazias, não se aguentou e soltou uma bela gargalhada. Ao ser interpelado pelos seguranças do museu, o maluco apenas explicou que não entendia por qual motivo toda aquela gente estava embasbacada a olhar para paredes vazias com ar de sapiência e credulidade. Para ele era evidente que, se as imagens mostradas eram invisíveis e indecifráveis para todos ali presentes, tanto faz se elas eram obras de arte bonitas ou rabiscos de criança. Não se pode embelezar coisinhas minúsculas invisíveis sem contar com uma boa dose de credulidade cega por parte dos visitantes do museu. Aos poucos as salas do museu começaram a esvaziar. Eram as pessoas saindo um tanto constrangidas após perceberem que tinham sido enganadas. Afinal, não se tratava de descobrir se as obras de arte eram belas ou não, mas simplesmente de perceber que pouco importava a beleza dessas obras se elas eram tão pequenas que se faziam absolutamente imperceptíveis aos olhos e ao coração.

A medicina também tem lá as suas coisinhas minúsculas. Às vezes ficamos embasbacados com medicamentos cujo efeito pode ser imperceptível mesmo aos olhos mais atentos. Acabamos acreditando nessas drogas porque alguns estudos publicados em uma literatura médica nem sempre confiável nos dizem que elas melhoram este ou aquele desfecho clínico. Porém, que importância pode ter uma melhora que seja clinicamente imperceptível? Isso é um pouco parecido com as “obras de arte” descritas na vinheta que dá início ao texto. Acreditamos no texto que descreve a obra, mas não percebemos de fato nenhuma obra nem qualquer resquício de beleza.

Recentemente, os EUA começaram a aprovar os novos medicamentos para a doença de Alzheimer apesar das críticas de muitos especialistas. Mesmo se os dados dos estudos forem absolutamente verdadeiros e se esquecermos os custos astronômicos dessas drogas para a sociedade e as elevadas taxas de efeitos colaterais potencialmente graves (como hemorragias e edema cerebral), ainda assim a melhora clínica obtida seria considerada pífia e estaria abaixo até mesmo do limiar de percepção clínica, conforme já demonstrado em alguns estudos. No caso do lecanemabe, a melhora obtida foi de meros 0,45 pontos na escala CDR-SB que tem 18 pontos e onde o mínimo clinicamente detectável seria de 1 a 2,5 pontos[i][ii][iii]. Já nos estudos que avaliaram o aducanumabe, a “melhora” foi ainda menor: apenas 0,39 pontos na mesma escala[iv]. Pode ser que essas drogas venham a se mostrar úteis no futuro – e é importante manter essa esperança acesa –, mas também é possível que estejamos nos precipitando e gastando fortunas em “obras de arte invisíveis”.

Em certa medida, algo semelhante pode ter acontecido no caso dos antidepressivos. Embora essas drogas sejam amplamente aceitas como eficazes, existem vários estudos demonstrando que o benefício médio delas em relação ao placebo nos ensaios clínicos é de apenas 1,9 pontos na escala de Hamilton[v], a qual tem 52 pontos e onde a variação mínima detectável clinicamente seria de 3 a 7 pontos[vi][vii]. Assim, pode ser que o benefício médio dos antidepressivos não seja nem mesmo perceptível na prática clínica. Isso talvez explique o fato de termos uma enormidade de pessoas usando antidepressivos e ainda assim as taxas de depressão e de mortes por suicídio seguirem aumentando nas últimas décadas[viii]. Além disso, a busca frenética atual por alternativas terapêuticas contra a depressão, como a estimulação cerebral profunda e drogas psicodélicas variadas, sugere que a própria medicina já tenha reconhecido o exagero ou distorção na narrativa “científica” da indústria e da mídia.

Da mesma forma como os visitantes do museu na vinheta inicial foram sugestionados a enxergar as “belas” obras de arte invisíveis, nós também podemos ser sugestionados a acreditar que os novos fármacos antiamiloide e os antidepressivos são drogas altamente eficazes. Porém, gastarmos fortunas em drogas cujo efeito não é nem mesmo perceptível clinicamente não parece ser a melhor maneira de investir os recursos escassos e finitos do sistema de saúde. Além disso, todos esses recursos gastos com essas drogas estão deixando de ser investidos em outras intervenções que poderiam ser muito mais visíveis e benéficas para a população, como o investimento em toda a rede de cuidados que acolhe as pessoas com demência e as políticas públicas que poderiam reduzir as taxas de depressão na população geral.

Em resumo, o uso disseminado de medicamentos com efeitos clínicos de escala liliputiana só interessa a uma indústria que fatura cifras indecentes vendendo essas drogas e produzindo ela mesma a “ciência” que embasa a sua adoção pelos profissionais. Os médicos e a sociedade como um todo deveriam ter o cuidado necessário para que os novos medicamentos só fossem aprovados e adotados na prática clínica quando os seus efeitos forem clinicamente relevantes para as pessoas e após serem demonstrados em pesquisas honestas. Caso contrário, corremos o risco de que muitas de nossas intervenções acabem servindo de decoração nas paredes de algum museu para intervenções ridiculamente irrelevantes.


[i] https://www.thenation.com/article/society/alzheimers-drugs/

[ii] https://link.springer.com/article/10.14283/jpad.2022.102

[iii] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6690415/

[iv] https://link.springer.com/article/10.14283/jpad.2022.30

[v] https://bmcpsychiatry.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12888-016-1173-2

[vi] https://ebm.bmj.com/content/25/4/130

[vii] https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1551714415300033?via%3Dihub

[viii] https://www.cdc.gov/nchs/products/databriefs/db464.htm