A medicina e os postes de luz

Diz a lenda que um homem caminhava por uma rua escura quando avistou outro sujeito abaixado junto a um poste de luz e tateando o chão como se procurasse alguma coisa. Surpreso, o homem quis entender o que estava acontecendo, e ficou sabendo que o sujeito estava procurando as chaves de casa. Tocado pela situação, o homem também se abaixa e passa a procurar de forma diligente pelas chaves do sujeito. Após vários minutos de uma busca infrutífera, o homem pergunta ao sujeito se ele tem certeza de ter perdido as chaves de casa por ali mesmo. Sem titubear, o sujeito diz que não tem a mínima ideia de onde perdeu as chaves de casa, mas como aquele é o único lugar iluminado na rua toda, resolveu procurar por ali mesmo.

A associação entre luzes e ciência já é antiga e passa pelos termos Iluminismo e Enlightenment. A luz é associada ao pensamento racional em contraponto às trevas que significariam a ignorância e a irracionalidade. Falamos com bastante frequência nas “luzes da ciência”, as quais seriam necessárias para guiar a humanidade rumo ao desenvolvimento e ao progresso. Durante muito tempo, essas luzes ficaram a cargo dos homens mais notáveis e sábios da sociedade, o que talvez correspondesse hoje aos nossos melhores cientistas e pensadores. O problema atual, mormente na área das ciências médicas, é que perdemos o controle das “luzes da ciência” ou – seria mais correto dizer – o entregamos para a indústria farmacêutica e de dispositivos médicos.

Com incríveis 75%[1][2] da pesquisa clínica nas mãos da indústria e todo o aparato científico (periódicos, academia, produção de congressos, etc.) em maior ou menor grau dependendo do financiamento da indústria, na prática é exatamente essa indústria que escolhe com relativa liberdade para onde irá direcionar as “luzes da ciência”, e isso nos traz sérios problemas. Da mesma forma que o sujeito da vinheta nutre a vã esperança de encontrar as chaves naquele pedacinho de chão iluminado pelo poste, também nós ficamos limitados ao tentarmos encontrar soluções para os problemas que afligem as pessoas apenas naquelas áreas onde a indústria concorda em lançar suas luzes. Como a indústria visa antes de qualquer coisa o desenvolvimento de produtos altamente rentáveis para si, podemos estar deixando de fora uma ampla gama de soluções que nunca serão nem mesmo testadas.

Tomemos como exemplo a questão da demência de Alzheimer, doença que apavora todos que vislumbram um envelhecimento saudável e produtivo. A indústria tem tentado emplacar a nova gama de anticorpos monoclonais de custo escorchante e que visam reduzir a carga de amiloide no cérebro. O problema é que, conforme as evidências atuais, tal redução das placas de amiloide não se reflete diretamente em uma melhora clínica relevante. Pelo contrário, apesar de os estudos demonstrarem reduções na carga de amiloide cerebral, a redução da progressão clínica da doença demonstrada nos estudos é pífia, vem acoplada a uma enorme taxa de efeitos colaterais graves (edema e hemorragia cerebral)[3][4] e, ao que parece, é tão pequena que é impossível de ser detectada clinicamente[5]. E isso que estamos falando de estudos delineados e conduzidos pela própria indústria, com todos os vieses inerentes, e cujos resultados muito provavelmente não serão nem mesmo alcançados nas populações clínicas heterogêneas atendidas na prática diária.

Até mesmo a indústria farmacêutica sabe (embora não o possa confessar) que a teoria das placas de amiloide está longe de ser a solução para os problemas causados pela doença de Alzheimer, da mesma forma que a “solução” anterior para o problema, representada pelos anticolinesterásicos, ficou muitíssimo aquém das expectativas criadas pela indústria, pela mídia e por uma ciência enviesada[6]. Se ainda assim insistimos nas drogas antiamiloide, é simplesmente porque as “luzes da ciência” estão em mãos erradas e iluminam apenas essa hipótese muito lucrativa para a indústria em detrimento de inúmeras possibilidades alternativas que jamais serão investigadas por não interessarem a quem comanda a pesquisa clínica. Resta saber por quanto tempo ainda ficaremos abaixados procurando as “chaves” junto ao poste dos anticorpos monoclonais antiamiloide.

No caso da doença de Alzheimer, há várias possíveis maneiras de reduzir a carga de doença na sociedade, o que representa o objetivo mais importante para todos nós. Já foi adequadamente demonstrado que a pobreza[7] e um baixo nível de escolaridade[8] aumentam o risco da doença de Alzheimer. Assim, é bastante plausível e digno de ser estudado que as medidas que reduzam a pobreza e aumentem o nível de escolaridade em uma determinada população possam reduzir a carga da doença de Alzheimer (além de reduzir vários outros problemas). Mas para isso deveríamos recuperar o controle e apontar as tais “luzes da ciência” nessa direção, o que não parece muito provável nos moldes atuais de financiamento das pesquisas clínicas. Isso sem falar em um sem número de possibilidades farmacológicas que nunca serão avaliadas porque a indústria farmacêutica com sua visão extrativista da ciência médica tentará sugar até o último centavo dos sistemas de saúde com suas drogas antiamiloide antes de passar para a próxima teoria mirabolante e sua nova classe de medicamentos blockbusters. Enquanto isso, a sociedade seguirá cada vez mais doente. E bem mais pobre.

Na mesma linha de raciocínio, o custo mensal do tratamento de cada paciente com doença de Alzheimer inicial com os novos e problemáticos anticorpos monoclonais está previsto como algo em torno de 10 a 20 mil reais[9][10] (valor que, segundo a Kaiser Family Foundation, pode chegar a mais de 30 mil reais mensais ao considerarmos os custos adicionais com exames e complicações frequentes[11]). Algum pesquisador poderia realizar um estudo para saber se é melhor gastarmos essa fortuna com os medicamentos antiamiloide ou simplesmente entregar o dinheiro ao paciente e à família para que o utilizassem da melhor forma possível em seus cuidados, o que poderia incluir bancar o custo de cuidadores, fisioterapeutas, médicos, nutricionistas, etc. É interessante imaginar como ficaria a comparação entre os dois grupos em termos de desfechos importantes como a qualidade de vida dos doentes, o grau de satisfação de pacientes e familiares, vários desfechos cognitivos e o grau de toxicidade financeira dos tratamentos. O provável resultado da comparação parece bastante claro, e se tal comparação parece impensável é simplesmente porque nosso pensamento crítico se tornou bastante tendencioso. Se tal estudo parece uma maluquice, é preciso lembrar que talvez seja uma loucura ainda maior gastarmos fortunas em drogas caríssimas, clinicamente irrelevantes e potencialmente perigosas para tratar pessoas e famílias que muitas vezes não têm acesso aos cuidados de saúde mais básicos por simples falta de dinheiro.

O caminho para a descoberta de melhores maneiras de abordarmos problemas graves para a sociedade, como a doença de Alzheimer, não pode ser uma rua escura com apenas um ou outro facho de luz que seja do interesse da indústria. Problemas tão importantes para os indivíduos, as famílias e os sistemas de saúde não podem ficar à mercê das luzes de uma indústria evidentemente enviesada e gananciosa. Precisamos de coragem para retomar o controle das “luzes da ciência”, além de liberdade e criatividade para encontrarmos novas maneiras de lidar com o problema. E precisamos de muita luz para iluminar o caminho, estimular ideias criativas e, principalmente, para enxergarmos melhor os tenebrosos meandros da produção científica na medicina atual.


[1] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9440766/#:~:text=A%202019%20study%20found%20that,by%20private%20companies%20%5B6%5D.

[2] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/196846

[3] https://www.statnews.com/2023/11/28/lecanemab-leqembi-aducanumab-donanemab-side-effects-aria-brain/

[4] https://www.science.org/content/article/will-unpredictable-side-effects-dim-promise-new-alzheimer-s-drugs

[5] https://www.thelancet.com/journals/lanhl/article/PIIS2666-7568(23)00193-9/fulltext

[6] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/article-abstract/2807943

[7] https://www.nytimes.com/2020/06/22/well/mind/living-in-poverty-may-increase-alzheimers-risk.html

[8] https://www.cdc.gov/aging/disparities/social-determinants-alzheimers.html

[9] https://www.thelancet.com/journals/lanam/article/PIIS2667-193X(23)00041-8/fulltext

[10] https://www.thelancet.com/journals/lanepe/article/PIIS2666-7762(23)00076-5/fulltext#:~:text=to%20clinical%20benefits.-,The%20pricing%20and%20budget%20impact%20of%20lecanemab,(24%2C766%20EUR)%20per%20patient.

[11] https://kffhealthnews.org/news/article/the-real-costs-of-the-new-alzheimers-drug-most-of-which-will-fall-to-taxpayers/