Apertem os cintos… o médico sumiu!

Na década de 1980, uma das comédias de maior sucesso foi Apertem os cintos… o piloto sumiu!, na qual os passageiros de um avião descobrem em pleno voo que o piloto está inconsciente devido a algum efeito colateral do jantar servido a bordo. Um dos personagens mais divertidos é o impagável Leslie Nielsen, casualmente fazendo o papel de um médico – Dr. Rumack – que estava a bordo da aeronave e acaba sendo chamado para atender os problemas de saúde que começam a surgir nos passageiros. A partir daí se desenrolam vários acontecimentos surreais, no melhor estilo de uma comédia pastelão, na tentativa de se conseguir pousar o avião em segurança.

A ideia de um avião estar voando sem que haja um piloto responsável pela segurança do voo permanece no imaginário de muitas pessoas como uma daquelas ameaças sempre presentes, ainda que isso seja absolutamente improvável na vida real. É sempre reconfortante sabermos que existe um piloto capacitado para a função e pronto para resolver qualquer problema que surja durante o voo. Também é interessante lembrar que a medicina tem tradicionalmente aproveitado o conhecimento acumulado pela aviação civil para lidar com a questão da segurança dos pacientes. Mas pode ser que isso agora esteja mudando.

Não é nenhuma novidade que os médicos têm perdido importância no ambiente de cuidados de saúde, o que certamente é muito triste para os médicos e bastante preocupante para os pacientes. Começamos por transferir grande parte de nosso poder terapêutico para as “drogas maravilhosas” da indústria farmacêutica. Depois disso, abrimos mão até mesmo de examinar adequadamente os pacientes e com isso transferimos boa parte de nossa capacidade diagnóstica para as máquinas e as tecnologias modernas. Não demorou muito para que a indústria criasse supercomputadores que seriam capazes de diagnosticar as doenças com muito mais precisão do que qualquer médico. Agora enfrentamos ameaças como a inteligência artificial e sua suposta capacidade de substituir o médico humano em atividades tão corriqueiras como escrever o registro das consultas ou fazer diagnósticos e definir tratamentos. Isso sem falar nas tecnologias de comunicação que afastam fisicamente o médico do paciente. Se mantivermos o rumo atual, em breve assistiremos ao surgimento de uma “medicina sem médicos”.

Médicos de verdade jamais concordariam em sair de cena, pois sabem que máquinas jamais se poderiam igualar a médicos de carne e osso. Porém, o que nos custa perceber é que máquinas podem substituir outras máquinas. Assim, nada mais natural do que transformar médicos de carne e osso em “máquinas” antes de substituí-los pelas máquinas maravilhosas da indústria da tecnologia. Isso é relativamente fácil, bastando para isso afastar fisicamente o médico do paciente e transformar gradualmente a atividade médica em algo frio e mecânico. Para conseguir essa “façanha”, basta fazer com que os médicos obedeçam fielmente a protocolos ou algoritmos engessados e sigam condutas absolutamente padronizadas (como as máquinas fazem!), usem a fria tecnologia para chegar a qualquer tipo de diagnóstico, se afastem fisicamente dos pacientes e acabem perdendo gradualmente a credibilidade na sociedade. Sim, a triste realidade é que já estamos a meio caminho de nossa transformação em máquinas e quase prontos para sermos substituídos!

É fundamental que a comunidade médica perceba o quanto antes o gradual apequenamento que vem sofrendo nas últimas décadas e os interesses economicamente poderosos que estão por trás dessa nefasta tendência. É igualmente importante que a sociedade como um todo compreenda o quanto antes o risco que todos nós corremos ao permitir que a tecnologia controle atividades humanas tão importantes como a medicina e o cuidar da pessoa que sofre. A tecnologia pode ser um bom coadjuvante no cuidado médico, mas jamais podemos admitir que ela substitua o médico humano.

Da mesma maneira que ninguém em sã consciência decolaria em um avião sabendo que ele é controlado apenas por máquinas ou pilotado à distância, parece ainda mais temerário não ter um médico humano diretamente responsável pelo cuidado clínico de uma pessoa que adoece e necessita de cuidados. Curiosamente, o drama descrito no filme só é resolvido quando um antigo piloto assume o comando da aeronave e a faz pousar com tranquilidade. Quem sabe nós também precisamos de um salvador de carne e osso que recoloque o médico no lugar de destaque que sempre mereceu na sociedade. Tanto quanto um avião sem piloto, uma medicina sem médicos de carne e osso é uma receita perfeita para o desastre!