O joio, o trigo e a MBE

A ideia inicial dos criadores da Medicina Baseada em Evidências (MBE) sempre foi muito boa: organizar as evidências científicas para oferecer o melhor tratamento possível aos pacientes. A iniciativa aumentou o rigor científico e definiu hierarquias rígidas para a avaliação dos estudos, o que certamente trouxe inúmeros benefícios. Porém, o rigor e a rigidez exagerados podem engessar o sistema como um todo, tornando-o inútil para situações extremas. Além disso, com o tempo as fraquezas de um sistema ficam mais evidentes e, depois de quase 30 anos, a MBE tem sofrido uma sucessão de golpes. O que chama a atenção é que algumas dessas críticas são feitas pelas próprias pessoas que ajudaram a criar, ensinar e difundir a MBE.

Em 2016, o pesquisador de Stanford John Ioannidis chamou a atenção geral ao declarar que a MBE tinha sido “sequestrada” pela indústria farmacêutica, chegando a afirmar que a medicina clínica tinha sido transformada em uma “medicina baseada em finanças”. Por trás de sua crítica está uma triste realidade: é muito difícil realizar estudos científicos com a qualidade necessária para atender às exigências da MBE sem o dinheiro da indústria farmacêutica. Ocorre que é igualmente difícil acreditar na lisura e transparência dos resultados de estudos clínicos realizados com o dinheiro dessa indústria quando se sabe que há bilhões de dólares em jogo dependendo dos resultados daquela pesquisa. Para tentar minimizar este problema comum com os estudos individuais foi criado um mecanismo: criar grupos de trabalhos formados por profissionais independentes para fazer análises conjuntas de todos os estudos relevantes em determinada área de interesse. Porém, depois de alguns anos de sucesso com essa iniciativa, também surgiram problemas.

Em 2018, a MBE foi sacudida por uma notícia: a organização Cochrane Collaboration, a qual havia sido criada exatamente para fazer essas metanálises e revisões sistemáticas dos estudos científicos, acabava de expulsar um de seus fundadores, Peter Gotzsche, o qual é tido por muitos como um dos ícones da resistência da MBE contra as pressões econômicas da indústria farmacêutica. Crítico ferrenho dos conflitos de interesse entre pesquisadores e indústria, ele acabou entrando em atrito com o novo líder da organização, a quem acusou de ser demasiadamente alinhado com a indústria. Entre as críticas feitas por Peter Gotzsche aos rumos da Cochrane estava o fato de que os próprios pesquisadores que faziam as metanálises tinham laços com a indústria farmacêutica. É difícil imaginar algo mais vital para reduzir a influência da indústria sobre a ciência do que garantir que os juízes do processo (os pesquisadores da Cochrane) sejam absolutamente independentes em relação à indústria farmacêutica. Mas esta é uma falha da instituição Cochrane e não da própria MBE, embora esta última também tenha seus problemas estruturais.

Na última semana foi a vez de Trisha Greenhalgh, pesquisadora britânica e autora de um dos livros seminais para o ensino da MBE, fazer as suas críticas em meio à confusão da pandemia de coronavírus. Em um artigo excelente, a autora reconhece logo uma das deficiências da MBE: em situações com escassez de tempo e com problemas logísticos como a atual é impossível produzir evidências científicas adequadas aos padrões da MBE. Mas ela reforça que nem por isso os médicos e as autoridades devem deixar de agir. Mesmo com evidências frágeis é necessário fazer algo para enfrentar a crise, corrigindo-se a trajetória à medida que surgem novas e melhores evidências. Segundo ela, a inação em uma situação dessas, pode ser ainda pior, chegando a propor que nessas situações não fosse aplicado o ditado hipocrático do primum non nocere. Situações críticas como uma pandemia são altamente complexas, sendo inúmeros os fatores que influenciam os desfechos clínicos. São fatores médicos, demográficos, econômicos e geográficos entre muitos outros que interagem de maneira difícil de prever. Em um típico estudo terapêutico em MBE, tenta-se controlar através da randomização todos os fatores que podem influenciar uma doença em questão, deixando-se como única variável a utilização de um medicamento ou, em seu lugar, um placebo. Como o tratamento sendo testado é a única variável, seu efeito (se existir e for suficientemente robusto) será demonstrado ao final do estudo. Ocorre que em situações extremas como uma pandemia, é impossível controlar todos os fatores imagináveis e as suas interações. Neste caso, a autora sugere que se utilize uma abordagem mais holística, a qual considera que várias medidas (medicamentos, medidas restritivas, máscaras, etc.) podem ter um efeito pequeno e difícil de mensurar cientificamente. Ainda assim, ao se melhorar em conjunto vários desses fatores, pode-se ter um efeito total clinicamente importante e que pode ser fundamental na condução de uma crise como a atual.

Trisha Greenhalgh acredita que a MBE não precisaria ser abandonada, mas a sua permanência no topo da hierarquia científica deveria ser revista, talvez devendo ser complementada por uma visão mais holística. Para John Ioannidis e Peter Gotzsche, a única saída seria a total independência entre pesquisadores e indústria farmacêutica. Seria maravilhoso recuperar a confiança na MBE, e a verdade é que consertar uma engrenagem já conhecida pode ser melhor que abraçar um paradigma totalmente novo. Ainda a favor da MBE, está o fato de que o futuro vislumbrado é de uma aproximação cada vez maior entre indústria e “ciência”, com a Big Pharma e a Big Data atuando juntas. Nessa nova maneira de fazer “estudos científicos”, o aspecto humano – pesquisadores de carne e osso com suas qualidades e defeitos – é substituído por máquinas que extraem e analisam dados para depois vomitar resultados e associações estatísticas. Recentemente, uma empresa de Big Data publicou um estudo científico e, ao ter seus dados contestados, não conseguiu explicar a maneira como teve acesso aos dados nem forneceu os códigos necessários para decifrar os dados. A situação é tão preocupante que levou mais de 100 pesquisadores de nuances de pensamento variadas a assinarem uma “carta aberta” aos investigadores e ao Lancet para explicar a situação. Enfim, se atualmente já é muito difícil para organizações como a Cochrane revisar os dados dos ensaios clínicos para tentar separar o joio do trigo, essa atividade poderá ficar impossível quando joio e trigo estiverem criptografados.

https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26934549/

http://bostonreview.net/science-nature/trisha-greenhalgh-will-evidence-based-medicine-survive-covid-19?fbclid=IwAR3yYyBw-DCR2KFtt7g52NzJRpnxFS4DXuHMEpEXKOxlPmCu6dJck02T6Lc

https://www.theguardian.com/world/2020/may/29/covid-19-surgisphere-hydroxychloroquine-study-lancet-coronavirus-who-questioned-by-researchers-medical-professionals

https://zenodo.org/record/3865253?fbclid=IwAR3X0C-f4h_FYjsp5US-tQs7uH2OUy4f1C_YTbUreSlrsk2BEahKy8brsXU#.XtT_A2hKjIU