Ver ou não ver… eis a questão.

Como acontece com qualquer médico, algumas consultas me marcam mais que outras. Acostumado a atender diariamente pessoas preocupadas, cansadas e amedrontadas, chamou-me a atenção há alguns dias a consulta de uma família de cegos. Enquanto o pai cego ficou aguardando na sala de espera, a mãe trouxe a filha adolescente até o consultório. Para ser exato, trouxe-a até a porta e dali seguimos os três juntos: a mãe agarrada na filha e esta segurando meu braço a servir-lhe de guia. O simples fato de estarmos nos tocando em uma época em que abraços e apertos de mão foram proibidos já pareceu algo inusitado e bastante agradável. É engraçado como os cegos dependem da boa vontade de estranhos para coisas tão simples e ainda assim conseguem se virar dentro da sociedade, pois sempre parece haver alguém disposto a ajudar. Ao entrarmos na sala saltava aos olhos de quem visse a cena algo que distinguia aquelas duas de qualquer outro paciente: elas estavam absolutamente sorridentes, brincando entre si de uma maneira difícil de se encontrar em outras famílias. Havia uma intimidade incomum entre elas talvez só explicável pela particularidade da falta de visão. No fim das contas, o motivo da consulta era algo corriqueiro como a realização de exames de rotina. Assim, acredito que eu tenha tirado mais proveito daquela consulta que a própria paciente.

O que leva essas pessoas com o que chamamos de “deficiência visual” a estarem tão risonhas e alegres em plena pandemia numa sala de espera cheia de pessoas mascaradas e preocupadas? Minha primeira impressão foi de que a falta dos indícios visuais de uma pandemia, como as pessoas todas mascaradas e o ambiente de preocupação em volta delas, poderia deixá-las menos suscetíveis a todo esse horror. Imaginei em seguida que talvez Saramago estivesse errado ao sugerir que somos todos “cegos que não querem ver” e que talvez a cegueira fosse mesmo uma bênção em um mundo maluco como o nosso. Mas acredito que não. O mestre lusitano estava mais uma vez certíssimo. Essas pessoas cegas que consultaram comigo estão acostumadas a ver a realidade das pessoas, e não a roupa elegante, a fisionomia preocupada ou a máscara de proteção. Elas sabem que sempre haverá alguém para ajudá-las a atravessar uma rua, encontrar um endereço ou escolher as compras no mercado. Elas usam o coração para enxergar “aquela coisa que somos e que não tem nome”. E sabem que, no fundo, as pessoas são boas. Talvez o fato de enxergamos tanto nos tenha cegado a todos.