O paradoxo da multiplicação de doenças

Diz a lenda que certo dia um simpático extraterrestre pousou no meio de uma reunião da American Medical Association (ou qualquer outra associação médica do mundo!) e fez uma pergunta para lá de constrangedora: “Como é possível que, apesar de as pessoas desse planeta usarem tanto remédio, elas estejam cada vez mais doentes? Elas não deveriam melhorar em vez de adoecer cada vez mais?” Perplexos, os doutores estariam até hoje buscando uma resposta.

Um dos maiores paradoxos da sociedade atual é que a humanidade nunca tomou tanto remédio e, ao mesmo tempo, nunca foi tão doente. Isso é paradoxal, uma vez que para qualquer nível determinado de doença em uma sociedade, o aumento do uso de medicamentos deveria promover uma redução dessa carga de doenças. Em vez disso, o que vemos é um aumento rápido e progressivo. Ou seja, o paradigma da busca de uma pílula milagrosa para cada doença parece estar falhando vergonhosamente.

E a culpa não é especificamente dos medicamentos, mas de todo o sistema de saúde e do paradigma atual de buscar curas farmacológicas para qualquer tipo de mal. É verdade que os medicamentos apenas muito raramente curam alguma doença. Eles, em geral, as controlam na melhor das hipóteses. Também há adoecimentos causados por efeitos diretos de medicamentos, os chamados efeitos colaterais. Mas o principal motivo para o fracasso do paradigma atual é que o foco estreito nos medicamentos nos impede de ver e agir sobre as causas mais amplas da maioria dos males atuais.

Há várias maneiras de aumentarmos a carga de doenças em uma sociedade. Algumas delas são bem reconhecidas, como a criação de doenças (disease mongering), a qual ocorre quando alargamos os limites diagnósticos de doenças e permitimos que pessoas até então saudáveis passem a ser consideradas “doentes”. Isso acontece, por exemplo, quando reduzimos os limiares para diagnóstico de hipertensão ou diabetes; quando passamos a considerar como pré-doentes pessoas que talvez nunca apresentariam determinadas doenças, como os novos portadores de pré-diabetes ou pré-demência; ou simplesmente quando criamos doenças novas sem qualquer base científica ou importância para a população, como no caso de vários rótulos diagnósticos discutíveis, como alguns transtornos psiquiátricos criados recentemente e que só parecem ser um transtorno na cabeça de quem os criou. Mas há ainda outras maneiras menos evidentes de multiplicarmos a carga de doença em uma sociedade.

Também podemos aumentar a carga de doenças na sociedade sempre que negligenciamos as suas causas básicas, sejam elas sociais, econômicas ou existenciais. E isso não é difícil perceber. O problema é que o sistema de saúde atual, fortemente influenciado pelo “conhecimento” cuidadosamente construído e disseminado pela indústria farmacêutica, tende a optar pela abordagem mais rápida e aparentemente mais fácil. Foi assim que passamos da medicalização da vida diária, já criticada há várias décadas por autores como Ivan Illich, para a farmaceuticalização da vida diária, quando esquecemos completamente que existe uma vida e uma história por trás de um potencial engolidor de comprimidos.

Quando um médico simplesmente receita um remédio erroneamente chamado de “antidepressivo” para uma pessoa que sofre porque sua vida está muito difícil ou seu emprego é ruim, o que ele faz é perpetuar uma situação de vida patogênica independentemente do efeito da droga prescrita. Ao perpetuar as condições adversas, estamos contribuindo para manter a pessoa doente por mais tempo. Além disso, o ambiente adverso não afeta apenas a pessoa em questão, mas também toda a família que vive sob as mesmas pressões e condições. No final das contas, não resolvemos de fato o problema daquela pessoa e ainda contribuímos para que ela e sua família permaneçam por mais tempo doentes. E o mesmo vale para outras doenças.

No caso de problemas como obesidade e diabetes, considerados como epidemias do mundo moderno, o mesmo raciocínio se aplica. Ao optarmos por simplesmente medicar as pessoas sem mudar seu ambiente social estamos não apenas contribuindo para a perpetuação de seu problema, mas criamos as condições ideais para que toda a família adoeça junto. Alimentação inadequada e sedentarismo são hábitos facilmente copiados pelos mais jovens na família. Além disso, essas pessoas também terão mais chance de perpetuar biologicamente a tendência a diabetes e obesidade entre seus filhos.

Dessa forma, ao optarmos por farmaceuticalizar o sofrimento humano estamos aumentando a carga de doenças na sociedade como um todo, já que deixamos de combater suas causas básicas. E isso continuará, entre outras coisas, enquanto permitirmos que a desigualdade social seja cada vez maior; que a colaboração entre as pessoas seja preterida em favor da competitividade; que refrigerantes e outras porcarias alimentícias sejam estimuladas na mídia e façam parte importante da alimentação das pessoas; que o transporte motorizado seja preferido em relação a meios mais saudáveis, como a bicicleta e a caminhada; e, principalmente, que a indústria farmacêutica seja a principal responsável pela produção, publicação e distribuição do “conhecimento” médico.

O esforço para mudar as características doentias da sociedade atual está em nossas mãos e só depende de nós mesmos. Mas para isso, temos que primeiro recuperar a altivez da medicina frente à indústria e voltar a enxergar o ser humano como alguém que tem uma história, um contexto e um conjunto de valores, buscando medidas terapêuticas que considerem toda essa riqueza de fatores. Enquanto isso não for feito, o que teremos é uma sociedade cada vez mais doente e medicada, pois continuaremos multiplicando doenças em vez de curá-las. E isso, volto a reforçar, é um paradoxo gritante em qualquer planeta.