Quanto custa um “estilo de vida”?

O chamado “estilo de vida” tem ganhado muita atenção atualmente nas mídias e nas redes sociais. Os adeptos desse tipo de atenção médica focada no “estilo de vida” das pessoas já realizam congressos específicos sobre o tema e sugerem a criação de mais uma especialidade médica: a “medicina do estilo de vida”. Isso pode soar um pouco estranho para aqueles profissionais mais generalistas que sempre entenderam o “estilo de vida” das pessoas como algo a ser avaliado em toda consulta e, dessa forma, podem não compreender a novidade do assunto ou a urgência de uma nova especialidade médica.

É evidente que a maneira como as pessoas vivem está fortemente ligada ao desenvolvimento de doenças e não faltam estudos relacionando esses fatores de risco com a gênese de várias condições clínicas. O que não está tão claro é se o que entendemos por “estilo de vida” é de fato um estilo ou se ele é simplesmente a única opção disponível para muita gente. De certa maneira, o que entendemos por “estilo de vida” pressupõe que as pessoas tenham amplas condições de optar entre várias possibilidades de atividades a escolher. Não é difícil perceber que nosso conceito de “estilo de vida” é em certa medida um construto elitista que deixa de fora uma enorme parcela da população.

Seria correto falar em um “estilo de vida” no caso de uma pessoa que tenha uma renda mensal boa e estável, que possa escolher livremente o horário do dia em que vai trabalhar e quantas horas irá dormir, o local onde desempenhará suas funções, o tipo de refeições que fará durante o dia e a maneira de se deslocar para o trabalho, o que poderia incluir a liberdade de escolher se irá morar longe ou perto de onde trabalha.  Por outro lado, falar em “estilo de vida” pode ser uma opção infeliz e até mesmo cruel para a imensa população que ganha muito pouco, passa várias horas dentro de ônibus e trens para se deslocar ao trabalho, tem poucos minutos para engolir uma refeição barata e de má qualidade nutricional e mora por necessidade em periferias afastadas dos centros urbanos. Todas essas pessoas sobrevivem de maneira assim sofrida não porque tenham escolhido esse “estilo de vida”, mas simplesmente porque essa é a rotina que o destino ou a própria sociedade reservaram para elas.

Já na década de 1990, Petr Skrabanek fazia críticas a essa preocupação exagerada com o “estilo de vida”, o que ele chamava de “lifestylism[1]. Skrabanek via com especial pavor as dietas excessivamente radicais e as atividades físicas praticadas a contragosto. Ele costumava apontar de maneira jocosa que, se as atividades físicas fossem praticadas diariamente durante décadas, é muito provável que o eventual tempo de vida ganho na velhice não compense todo o tempo investido diariamente durante a juventude. Isso não seria um problema se a pessoa praticasse atividades físicas que considerasse prazerosas para si, mas pode ser uma equação difícil de solucionar quando a atividade física é percebida como desagradável ou vista como um castigo pela própria pessoa.

Outra crítica de Skrabanek, e que pode ser ainda mais pertinente, é que o foco exagerado no “estilo de vida” pode acabar fazendo com que os profissionais de saúde culpem a própria vítima pelas doenças desenvolvidas. Isso não significa que o “estilo de vida” das pessoas não tenha de fato contribuído para suas doenças, mas sim que devemos lembrar que a imensa maioria dessas pessoas simplesmente não tem condições de adotar um “estilo de vida” mais saudável em grande medida por questões socioeconômicas. É provável que essas pessoas se beneficiem muito mais com políticas públicas efetivas que melhorem sua condição socioeconômica do que com consultas de especialistas em “estilo de vida”.

Uma análise recente[2] mostra que 90% dos brasileiros ganham menos de R$ 3.500,00 mensais e que apenas 5% dos trabalhadores ganham mais de R$ 10.000,00. É pouco provável que esses 90 a 95% de brasileiros tenham real autonomia para escolher livremente a maneira como viverão suas vidas, e o custo de um “estilo de vida” saudável provavelmente esteja em algum lugar entre essas duas rendas mensais supracitadas. É evidente que essas pessoas que estão na base da pirâmide salarial costumam ter sua saúde adversamente afetada pela forma como vivem seu dia a dia e se beneficiariam muitíssimo se pudessem realmente adotar um “estilo de vida” saudável. Mas elas não vivem assim por livre escolha, e provavelmente não poderão ajustar positivamente seu “estilo de vida” por mais que o desejem. Por outro lado, aqueles 5 ou 10% de pessoas de maior renda provavelmente já têm uma saúde muito melhor que os outros 90 a 95% simplesmente por estarem no topo da pirâmide de renda do país, e se beneficiarão relativamente menos com mudanças de rotina.

Enfim, a possibilidade de escolher livremente um “estilo de vida” saudável não parece ser uma perspectiva realista para pelo menos 90% dos brasileiros que lutam para sobreviver às agruras do dia a dia. Isso não significa que a lógica da medicina do “estilo de vida” esteja errada ou que esses profissionais não estejam bem-intencionados, mas sim que deveríamos buscar maneiras de permitir que as pessoas que se encontram na base da pirâmide salarial também se beneficiem dessas boas ideias, a fim de maximizar os benefícios para a saúde de toda a população e para que a chamada “medicina do estilo de vida” não se transforme em um tipo de “especialidade de boutique”. Além disso, é preciso cuidado para não culparmos as vítimas por doenças que são em grande medida causadas ou potencializadas por desigualdades sociais criadas pelo homem. É claro que exercitar-se regularmente, comer bem, dormir o suficiente, controlar o estresse, ter tempo para o lazer e manter boas relações sociais na comunidade são coisas que fazem bem à saúde das pessoas, mas não há dúvidas de que o acesso a esse “estilo de vida” saudável é bastante assimétrico na sociedade e de que deveríamos tentar reduzir essas disparidades para o bem de todos. Desconsiderar essa gritante desigualdade vai apenas aumentar o abismo que separa a saúde de ricos e pobres.


[1] Skrabanek, P. The death of humane medicine, 1994.

[2] https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2021/12/13/calculadora-de-renda-90-brasileiros-ganham-menos-de-r-35-mil-confira-sua-posicao-lista.htm