Nada a fazer?

Nada a fazer… Esta frase dita assim, em tom de resignação, abre uma das peças mais conhecidas da história do teatro. Nela, o irlandês Samuel Beckett inaugura uma fase em sua obra que ficaria conhecida como “teatro do absurdo”. Porém, o absurdo não se referia ao aspecto non sense dos diálogos travados entre os personagens principais, mas sim ao absurdo da própria existência humana. Ao abusar de comportamentos repetidos e acontecimentos triviais, Beckett sugere a insignificância da maioria de nossas ações diárias.

Grandes obras de arte não se revelam imediatamente ao espectador, e isso não é diferente no caso de Esperando Godot. Em meio aos seus diálogos confusos e aparentemente sem sentido, Beckett destila uma coleção de pérolas existenciais que devem ser cuidadosamente recuperadas e saboreadas pelo espectador. A peça foi escrita na década de 1950, época em que o movimento existencialista estava em alta entre os pensadores e quando, ao final de uma guerra sangrenta, as pessoas tiveram que retornar à aparente desimportância das coisas cotidianas. É por isso que é impossível não fazer correlações entre as ideias de Beckett e o pensamento de Camus, Sartre e Frankl quando estes falavam da necessidade humana de buscar algum sentido para a própria existência.

Se a vida é um absurdo sem sentido e os personagens estão literalmente morrendo de tédio, só o que resta é tentar o suicídio, e isso os personagens fazem várias vezes durante a peça. A única coisa que os impediria de seguir tentando o suicídio dia após dia seria a chegada de Godot, mas eles nem mesmo sabem quem é este Godot. O próprio Beckett – que não era de muita conversa – brincava com a ideia de não ter deixado claro quem seria Godot, limitando-se a dizer que Godot não era Deus.

Na história, o único personagem que parece alheio a essa angústia existencial recebeu o sugestivo nome de Lucky e funciona como uma espécie de burro de carga. Como está sempre entregue ao trabalho, Lucky é um “sortudo” que não tem tempo para grandes metafísicas. Já os outros vivem encurralados entre um tédio mortal e a espera da chegada de Godot, a qual é diariamente adiada. Entregues a essa rotina tão humana e banal “o ar fica repleto de nossos gritos e o hábito funciona como uma grande surdina”.

Apesar dessa incerteza toda, sempre me pareceu que Godot só poderia ser a própria morte. Quem mais impediria que a humanidade entediada se matasse se não a própria morte? De modo alternativo, poderíamos imaginar Godot como sendo o sentido da vida. Porém, no final das contas é a própria morte que dá sentido às nossas vidas. Isso não significa que a morte “seja” o sentido de nossas vidas – embora isso de certa forma também seja verdade –, mas é ela quem pode nos dar alguma motivação para continuarmos respirando. Se não existisse a morte, viveríamos a esmo por toda a eternidade. É exatamente porque sabemos da finitude nossa e das pessoas amadas que procuramos fazer algo de valor em nossas vidas. Caso contrário, como diz um personagem, “no meio de toda essa confusão, a única coisa que está clara é que estamos esperando Godot”.

Em um dos momentos inspirados da peça, um dos personagens se refere à vida como se transcorresse “do útero para o túmulo… e um parto difícil… lá no fundo da terra o coveiro ajuda com o fórceps… dá o tempo justo de envelhecer”. Vladimir e Estragon chegam ao final da peça aparentemente sem terem descoberto nenhum sentido especial para suas existências, limitando-se à rotina de esperar Godot e agarrados à esperança de que o último minuto será maravilhoso. Eles parecem resignados a repetir dia após dia a rotina absurda de uma existência sem sentido e satisfeitos com a ideia de continuar parados à beira da estrada esperando Godot.

Alguns de nós podem pensar diferente e tentar fazer algo de valor no tempo que ainda nos resta. Na verdade, não precisamos esperar Godot, já que ele nos encontrará inexoravelmente onde quer que estejamos. Se é verdade, como diz Estragon, que “todos nascemos loucos, mas alguns continuam”, talvez a verdadeira loucura seja simplesmente ficar de braços cruzados esperando Godot. Nada a fazer? Não… há muito ainda por fazer!