Quando a morte é um prazer

Definitivamente, Clarice Lispector não era uma pessoa comum. E aquela loucura controlada que permeia sua obra parece mais do que nunca querer aflorar em sua Água viva. É nesta obra de difícil classificação – um misto de ensaio e poesia – que ela aborda de maneira bastante singular temas como Deus, o tempo, a consciência e a morte. Mas que não se espere uma abordagem regrada e sistemática, trata-se mais de um mergulho em devaneios filosóficos sem qualquer controle aparente ou conclusão esperada. É que Clarice gostava de habitar aquele lugar que fica atrás do pensamento e onde não há palavras, onde apenas é-se.

Quando Clarice questiona se a morte não poderia ser um prazer ela não está assim tão maluca. Imaginamos a morte como a pior sensação possível, mas a morte é exatamente a ausência de qualquer sensação. O próprio Schopenhauer já fazia um raciocínio semelhante quando falava de seu conceito de “felicidade negativa”, o que nada mais era do que uma sensação neutra desencadeada pela ausência de sofrimento ou dor. Além disso, nosso cérebro e nossos órgãos dos sentidos funcionam de uma maneira mais relativa do que absoluta. Tomemos um exemplo: quando sentimos a temperatura de um objeto ou ambiente, não sentimos a temperatura em sua forma exata e absoluta, mas apenas uma comparação relativa à temperatura de nossa pele naquele momento ou do ambiente em que nos encontrávamos antes. E isso pode ocorrer também em um nível mais profundo em relação a nossos sentimentos e emoções: nossa situação anterior a um evento pode determinar a nossa percepção ou resposta àquela situação.

Essas mentes criativas de artistas, poetas e outros loucos maravilhosos pensam de maneira diferente do habitual, utilizando caminhos mais fluidos ou tortuosos e chegando a conclusões algumas vezes inusitadas, mas nem por isso menos verdadeiras. Assim, é possível que algumas ideias de poetas possam inspirar até mesmo os chamados homens da ciência. É evidente que há situações em que a morte pode ser um prazer. Obviamente não seria este o caso para alguém saudável que esteja na plenitude de sua vida quando a morte chega, mas poderia bem sê-lo no caso de um idoso acamado há vários anos por uma doença neurodegenerativa avançada ou de uma pessoa com câncer que sofra dores excruciantes durante meses antes de morrer. A situação de vida dessas pessoas é muitas vezes tão terrível que podemos até mesmo imaginar que a morte, neste caso, seja mesmo um prazer, ainda que um prazer egoísta, como dizia Clarice, já que nunca teremos certeza.

E se morrer tiver mesmo o gosto de comida quando se está faminto, isso talvez explique as tantas experiências de quase-morte em que as pessoas relatam ter se sentido tão bem durante aquele período a ponto de não desejarem retornar à vida. Em resumo: o processo de morte pode ser terrível ou até mesmo prazeroso para quem morre, a depender de como nos encontrávamos antes dele. Se alguns perdem a vida ao morrer, outros apenas se libertam de um sofrimento que já não tinham mais como suportar. Por mais que a medicina evolua em sua tentativa de minimizar o sofrimento das pessoas, sempre haverá situações de dor e sofrimento em que nossas limitações ficarão evidentes. Perder alguém querido é sempre ruim, mas há situações em que um apego desmedido pode ser ainda pior. Às vezes, tentar a qualquer custo prolongar a “vida” de uma pessoa nessas situações é apenas aumentar a sua fome.