Uma dose de Bradford Hill

Conhecer a história de grandes descobertas na medicina e o trabalho de alguns dos brilhantes pensadores que foram pioneiros em suas áreas pode ser, além de um exercício de gratidão, uma forma divertida de aprender sobre a ciência e a importância de pensar diferente.

O britânico Sir Austin Bradford Hill sonhava em ser médico, mas a eclosão da Primeira Guerra Mundial e o surgimento de uma tuberculose pulmonar – doença sem tratamento na época – acabaram colocando por terra o seu sonho. Durante os anos que permaneceu hospitalizado e mais algum tempo em convalescença, Bradford Hill não desanimou e acabou estudando por correspondência e obtendo sua graduação em economia em Londres.

Mesmo sem a formação em medicina, Bradford Hill especializou-se em epidemiologia e estatística, tendo contribuído de maneira significativa para o avanço da ciência nesta área. Bradford Hill fazia parte do grupo que desenvolveu na década de 1940 aquele que é tido por muitos como o primeiro ensaio clínico randomizado: o estudo que avaliou o uso de estreptomicina para tratamento da tuberculose[1], exatamente a doença que, de certa forma, o impediu de ser médico.

Outra contribuição importante de Bradford Hill foi a sua colaboração com Richard Doll[2],[3]. Juntos os dois pesquisadores estudaram a associação entre o tabagismo e o desenvolvimento do câncer de pulmão. É importante lembrar que o tabagismo era onipresente naquela época mesmo entre os próprios médicos, chegando ao ponto de algumas revistas médicas exibirem publicidade da própria indústria do tabaco[4],[5]. Porém, graças a este trabalho pioneiro, o mundo conheceu os verdadeiros riscos ligados ao tabagismo, o que certamente salvou muitas vidas.

É possível que, ao investigar a associação entre tabagismo e câncer de pulmão, Bradford Hill tenha em algum momento se perguntado se esta associação representava uma causalidade ou uma simples associação. Com essa dúvida em mente ele desenvolveu o trabalho pelo qual é mais reconhecido até hoje: os critérios de Bradford Hill[6] para a avaliação da causalidade das associações. Até hoje, para decidirmos se a associação entre uma exposição e uma doença ou condição é causal, lançamos mão de seus nove critérios: força da associação, consistência, especificidade, temporalidade, gradiente biológico, plausibilidade, coerência, evidências experimentais e analogia.

Assim, o mesmo Bradford Hill que não teve uma saúde suficientemente boa para estudar e se graduar em medicina, acabou fazendo contribuições inestimáveis para a ciência médica e salvando muitas vidas: ajudou a elaborar o conceito de ensaio clínico randomizado, o qual é até hoje uma das ferramentas mais importantes da pesquisa médica; desenvolveu um conjunto de critérios que leva o seu nome e que ainda nos ajuda a definir a importância das associações; e descobriu o perigo que o hábito de fumar representava para a sociedade, contrariando a crença estabelecida na época e demonstrando que, algumas vezes, a maioria pode estar redondamente enganada.


[1] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2091872/?page=10

[2] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2038856/

[3] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2085438/

[4] https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/302011

[5] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1470496/

[6] https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/003591576505800503