Como ler artigos científicos… hoje!

O surgimento na década de 1990 de um novo modelo científico, a Medicina Baseada em Evidências, fez com que os profissionais de saúde tivessem que se aperfeiçoar na avaliação das evidências científicas seguindo as diretrizes das organizações que implementavam o novo paradigma. Com o passar do tempo, a avaliação crítica de estudos científicos passou a ser lugar comum nos meios acadêmicos e entre os profissionais que tentavam se manter cientificamente atualizados. Porém a década de 1990 já está distante e desde então muita coisa mudou na forma como fazemos ciência. Assim, é de se supor que a maneira como avaliamos os artigos científicos também deva ser atualizada.

Com o crescente domínio das ferramentas da MBE e com a condução e financiamento das pesquisas cada vez mais nas mãos da indústria e dos profissionais por ela contratados, vimos uma transformação radical da MBE. Há estimativas de que até 70% das evidências científicas relacionadas a novos medicamentos são produzidas pela própria indústria que produz e vende a preço de ouro os medicamentos avaliados nos estudos. Assim, aprovar os medicamentos nos estudos tem importância capital (perdão pelo trocadilho!) para a empresa e seus investidores. Este é um viés gigante que não recebe a atenção necessária. Porém, trata-se de um problema suficientemente grande para distorcer boa parte da produção do conhecimento científico ou do que costumamos chamar de “ciência”.

O espanhol Ortega y Gasset dizia que o investigador que se dedique a explorar um determinado assunto deveria evitar o simples deslizar horizontal pela superfície amena das palavras apresentadas no texto. Em vez disso ele deveria trocar a leitura horizontal por uma outra vertical, “deslendo” o texto e mergulhando em suas profundezas e no real significado de cada afirmação apresentada pelos autores. Talvez seja mesmo o caso de sermos radicais como nos sugere Ortega y Gasset ao avaliarmos os estudos atuais. Sem nunca minimizar a importância dos guias clássicos para a leitura de artigos científicos, talvez algumas dicas com pitadas de ironia e bom humor possam melhorar nossa percepção para separarmos o joio da joia.

Podemos começar analisando o título dos artigos para saber se o assunto é de nosso interesse. O próximo passo é pular direto para a seção de conflitos de interesse. É aqui que veremos se o artigo em questão se trata de um estudo sério ou de uma provável peça de marketing farmacêutico travestida de “ciência”. Se entre os autores se encontrarem funcionários da empresa que fabrica o medicamento estudado, feche rapidamente o artigo. Se a lista de conflitos de interesses dos pesquisadores for maior que sua titulação, melhor nem perder tempo na análise. E se o nome do fabricante do medicamento estiver citado como patrocinador do estudo, o melhor mesmo é fugir. Estudos científicos sérios deveriam ser delineados e conduzidos por pesquisadores independentes e financiados por instituições públicas ou que não tenham interesse direto no medicamento testado. Infelizmente, a verdade é que estes estudos estão entrando em processo de extinção. A regra atual é os estudos serem fabricados (note aqui a ambiguidade do termo!) pela própria indústria. Se o leitor, por alguma razão, insistir em ler o artigo, uma boa ideia é que o faça de pé, segurando o artigo longe do corpo e com um dos pés afastados em direção posterior. O ideal seria exercitar um tipo de “paciência científica” e aguardar mais algum tempo até que a realização de estudos independentes ou uma revisão sistemática séria sobre o tema elucidem a questão. Devemos lembrar que grande parte dos “avanços” científicos descritos em periódicos e na mídia não se verifica na prática médica diária com a mesma velocidade e intensidade. O tempo é o grande depurador da ciência.

Se for o caso de ler o artigo, não devemos esquecer de mergulhar também em suas entranhas, ou melhor, nos apêndices (nossa… mais um trocadilho!) que os periódicos costumam publicar. É muito comum que a indústria esconda a sete chaves os dados dos estudos, mas algumas vezes podemos achar coisas interessantes e discrepâncias entre as afirmações do texto principal e as informações, tabelas e gráficos constantes nos apêndices. Mergulhe sem medo nesse emaranhado de informações. Você terá pouca companhia, pois quase ninguém faz isso. É bom também lembrar que os estudos publicados pela indústria são muitas vezes apenas um resumo milimetricamente construído para convencer o leitor da eficácia do medicamento. Tal construção costuma ser fruto de um trabalho conjunto de cientistas, marqueteiros e profissionais de redação da própria indústria ou de empresas terceirizadas especializadas na elaboração e edição de textos médicos.

Enfim, ao obter o controle da pesquisa, a indústria fica livre para fazer todo o possível para facilitar a demonstração de “sucesso” de seu medicamento. Isso inclui escolher desfechos clínicos que sejam de seu interesse para uma aprovação rápida, mas que em nada interessem aos pacientes que venham a usar tal medicamento na vida real. A indústria também fica livre para escolher o tipo de paciente com mais chance de se beneficiar do tratamento ou para excluir aqueles com qualquer característica que possa sugerir um maior risco de efeitos colaterais ou de desfechos negativos. E se tudo isso falhar, a indústria ainda tem a chance de usar artifícios menos nobres ou de simplesmente sepultar aquele estudo e nunca ficarmos sabendo de mais um fracasso daquela droga. A boa notícia é que, se a indústria farmacêutica é livre para fazer tudo isso, também somos livres para escolher o tipo de informação a que seremos expostos. E como somos moldados por tudo aquilo a que somos expostos, é uma escolha nossa se seremos nós também distorcidos pela indústria ou se buscaremos uma maneira de mudar essa constrangedora situação em que nos metemos.