Niilismo médico – A arte de negar

O niilismo é tradicionalmente visto como qualquer visão filosófica que carregue uma negação significativa. Assim, podemos ser niilistas em relação à existência de Deus, à imortalidade da alma e ao livre arbítrio. Alguém que adere à teoria de que nada é verdadeiro é um niilista. Mas o niilismo admite nuances e soluções diferentes, e é isso o que o filósofo Jacob Stegenga tenta nos mostrar em seu belo livro Medical Nihilism, no qual leva ao extremo o ceticismo médico e sugere um niilismo médico ou, de maneira mais exata, um niilismo terapêutico.

Segundo o autor, deveríamos confiar muito pouco na efetividade das intervenções médicas em geral, já que na realidade há muito menos intervenções efetivas do que imaginamos. Através de um elegante raciocínio bayesiano, Stegenga mostra que a nossa expectativa a priori de que as novas intervenções sejam efetivas deveria ser bastante baixa. Por um lado, os fracassos em experimentos prévios, a escassez de intervenções com efetividade significativa (balas mágicas como a penicilina e a insulina), a ubiquidade de efeitos terapêuticos de tamanho muito pequeno e de dados de pesquisas discordantes reduzem a probabilidade de que novas intervenções sejam altamente efetivas. Por outro lado, os vieses sistematicamente presentes nas pesquisas (como o viés de publicação), os erros, as fraudes e os conflitos de interesse fazem com que seja grande a probabilidade de que o efeito descrito em publicações médicas tenha sido amplificado artificialmente.

No livro são analisados de maneira bem clara vários aspectos da ciência médica atual, com ênfase na chamada Medicina Baseada em Evidências (MBE). Entre as críticas de Stegenga ao modelo estão o uso inadequado das hierarquias de tipos de estudos (sem considerar as particularidades de cada tipo de delineamento), a maleabilidade das revisões sistemáticas e metanálises (fazendo com que seus resultados possam ser influenciados por decisões como a escolha das evidências primárias ou das medidas de desfecho) e a presença muito frequente de conflitos de interesses nas pesquisas (o que acaba minando a credibilidade das próprias pesquisas).

Apesar de tudo, a conclusão do autor não é de que se deva desistir da ciência ou abandonar todas as intervenções médicas. Pelo contrário, o autor sugere algumas medidas para tentar “salvar” a MBE e a própria medicina, entre elas a redução da influência da indústria sobre as pesquisas, a mudança nas prioridades de pesquisa e a correção de problemas metodológicos. Considerando os problemas apontados no livro, fica evidente que as pessoas deveriam consumir menos intervenções médicas, os médicos deveriam prescrever menos medicamentos e os órgãos reguladores deveriam aprovar menos intervenções médicas. Agindo assim, se poderia chegar ao que o autor denomina de “medicina delicada”, a qual evita todo o excesso e agressividade da medicina atual, mas sem abrir mão daquelas poucas intervenções que realmente fazem a diferença para os pacientes.