Quem ainda lembra de salk e sabin?

A história é um lugar fabuloso para buscarmos inspiração para o presente e o futuro. Para que isso seja possível, é necessário conhecermos bem a história e, principalmente, não a esquecermos tão facilmente. Na medicina isso também é verdadeiro, e conhecer os grandes feitos da medicina pode nos ajudar a compreender melhor os nossos sucessos e mazelas atuais. Para isso, nada melhor do que relembrar grandes heróis da ciência como Jonas Salk[1] e Albert Sabin[2], ambos responsáveis diretos pelo sucesso na luta contra a poliomielite no mundo.

Jonas Salk foi responsável pelo desenvolvimento da vacina injetável contra a poliomielite em um período da história em que os Estados Unidos viviam uma epidemia da doença que afetava diariamente a vida dos cidadãos[3]. Foi nesse ambiente, em 1954, que Salk desenvolveu e testou sua vacina em um estudo[4] que envolveu nada menos que 1,8 milhões de crianças apenas nos Estados Unidos. Apesar do tamanho do estudo e da escassez de tecnologias de informação na época, o estudo demorou apenas 1 ano para ser completado e ter seus resultados conhecidos: estava criada uma vacina segura e com efetividade de 80-90% contra as formas graves da doença. Tudo isso foi realizado com financiamento público e com enorme apoio da população. Além disso, o estudo foi realizado em um ambiente da vida real onde as crianças testadas eram exatamente as mesmas que receberiam a vacina depois do estudo. Nada de viés de seleção ou de publicação. Nada de conflitos de interesse econômicos. Enfim, ciência de verdade feita por pessoas que tinham a saúde da população como objetivo principal. Isso sem falar que Salk abriu mão até mesmo da patente da vacina, declarando que a vacina era do povo e que não era possível patentear a natureza.

Albert Sabin não foi menos importante que seu antecessor na luta contra uma doença tão temida. Seu desafio era criar uma vacina administrada por via oral que pudesse ser mais facilmente aplicada e levada até populações distantes e carentes. Mas Sabin tinha um grande desafio a superar: o sucesso de Salk tornou a poliomielite tão incomum nos Estados Unidos que ficava difícil realizar um estudo com a dimensão necessária para demonstrar a eficácia da vacina. Porém, isso não foi motivo para que ele abandonasse a empreitada nem apelasse para os “atalhos científicos” tão comuns hoje em dia. Sabin utilizou seus contatos do outro lado do mundo e conseguiu testar sua vacina em milhões de pessoas na então União Soviética e em outros países, inaugurando dessa forma a chamada “diplomacia das vacinas”. A exemplo de Salk, Sabin também abriu mão da patente de sua vacina. Agora o mundo tinha duas excelentes vacinas para erradicar a cruel poliomielite no mundo todo. O mundo também acabava de ganhar dois grandes heróis.

Essa história pode nos ensinar muita coisa, principalmente agora que privatizamos a ciência e trocamos o interesse maior na verdade científica e na saúde da população pelos interesses de corporações multibilionárias que amealham cada centavo possível para engordar seus indecentes lucros. Parece que nada aprendemos com os exemplos de Salk e Sabin. Para que se entenda o tamanho do nosso vertiginoso mergulho moral e o abismo científico que nos separa da grandeza desses homens é preciso perguntar: se Salk conseguiu estudar milhões de crianças e randomizar centenas de milhares de crianças há 70 anos, o que poderíamos ter feito atualmente na época da comunicação global imediata e dos softwares estatísticos e megacomputadores? Poderíamos ter randomizado milhões de crianças no mundo todo em poucos dias e gerado resultados altamente confiáveis sobre a segurança e eficácia das novas vacinas testadas na pandemia. Da mesma forma, se Sabin pôde randomizar crianças na então inimiga União Soviética, no século XXI poderíamos ter randomizado crianças ainda não vacinadas nos quatro cantos do mundo para gerar resultados confiáveis em vez de tentar justificar os esquálidos estudos como consequência de mudanças na prevalência do vírus ou em sua composição genética. Em vez disso preferimos nivelar por baixo a régua de segurança e efetividade ao mesmo tempo em que regulávamos por cima a régua dos lucros indecentes da indústria.

É evidente que o fato de termos deixado a pesquisa clínica nas mãos das megacorporações e a desproporção entre o que fizemos e o que poderíamos ter feito está por trás do altíssimo nível de desconfiança da população em relação a essas vacinas atuais. Para se ter uma ideia, apenas 18% dos pais americanos pretendem vacinar seus filhos pequenos contra a covid[5]. É bom que se entenda: as vacinas – enquanto um bem público universal – são realmente maravilhosas, mas é preciso lembrar que essa afirmação repetida ad nauseam se baseia em grande medida naquelas vacinas antigas testadas em milhões de pessoas por pesquisadores idôneos e sem conflitos de interesse com as megacorporações farmacêuticas. O que temos hoje é apenas uma sombra esquálida e constrangedora daquela época em que grandes homens faziam experimentos científicos de forma altruísta em prol da humanidade. Além disso, afirmar que todas as vacinas existentes são sempre boas em todas as situações e para todas as pessoas pode ser tão idiota quanto dizer que nenhuma vacina é boa.

Salk e Sabin continuarão sendo heróis ainda por muito tempo. A mesma sorte não parece reservada aos pesquisadores que emprestaram (ou venderam) seus nomes para as corporações por trás das vacinas atuais. Isso não significa dizer que as vacinas atuais não tenham qualidades, pois parece claro que as têm. Mas a verdade é que deveríamos ter exigido que a ciência produzisse estudos de qualidade muito melhor do que o que nos foi apresentado, com estudos limitados a poucas centenas de pacientes em plena pandemia e no século XXI. Isso não era justificável na época de Salk e Sabin e muito menos hoje quando os recursos para realizar grandes estudos são muitíssimo maiores.

É preciso fazer uma distinção clara entre a defesa da “ciência” e a defesa do “establishment científico”. A primeira é uma atividade altruísta, crítica e desinteressada que visa resgatar a credibilidade e honestidade dessa que é uma das grandes criações da humanidade, enquanto a última pode ser apenas uma forma um tanto egoísta de garantir recursos para si e a manutenção de um status quo que pode ser até mesmo prejudicial à população. Aquelas mesmas pessoas que gritam que a ciência deve estar acima de tudo, como fazem os mais loucos fundamentalistas de outras religiões, não poderiam calar quando o assunto é conflitos de interesse ou quando se questiona se é científica e moralmente defensável que a indústria farmacêutica teste seus próprios mimos terapêuticos e produza as tais “evidências”. Pelo menos Salk e Sabin puderam dormir tranquilos.


[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Jonas_Salk

[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Albert_Sabin

[3] https://www.mayoclinic.org/coronavirus-covid-19/history-disease-outbreaks-vaccine-timeline/polio

[4] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1114166/

[5] https://khn.org/morning-breakout/long-wait-over-nearly-all-kids-can-now-get-a-covid-vaccine/