A mais bela proposta de saúde

A medicina tem como objetivos fundamentais salvar vidas, evitar ou combater as doenças e promover a saúde das pessoas. Esses objetivos se entrelaçam de tal maneira que podemos salvar vidas não apenas quando tratamos adequadamente de um paciente que chega em estado grave na emergência, mas também quando evitamos o adoecimento da população com alimentação adequada e água potável, quando promovemos hábitos de vida saudáveis e quando tratamos precocemente doenças que poderiam se agravar com o passar do tempo. Por mais que fiquemos impressionados com os avanços da medicina altamente tecnológica dos últimos anos, é necessário reconhecer que grande parte do ganho de expectativa de vida que a humanidade apresentou no século passado se deve a condutas muito simples, como a redução da mortalidade infantil, saneamento básico e melhores condições de trabalho e moradia. Ainda assim, tendemos a enxergar – em parte porque é isso o que nos é mostrado – apenas as conquistas obtidas pela medicina high-tech, deixando de lado aquelas tantas vidas salvas pelas intervenções mais simples.

Quando se fala como nunca das mortes no mundo, damos pouca importância a uma das principais e mais tristes causas de morte: a fome. Sabemos que a fome mata todos os anos quase 10 milhões de pessoas e, entre elas, mais de 3 milhões de crianças[1]. Isso é muito mais do que algumas doenças mais conhecidas e que acabam ganhando todas as manchetes. Talvez se a mídia mostrasse diariamente a contagem das cerca de 25.000 pessoas que morrem de fome todos os dias no mundo as pessoas se sensibilizassem mais. Quem viveu a década de 1980 deve lembrar de como a mídia mostrou durante algum tempo a terrível crise da fome na Etiópia[2], chegando-se inclusive a realizar um megaespectáculo chamado Live Aid, o qual reuniu grandes nomes da música internacional para arrecadar recursos para o combate da fome na África. O problema é que essas mortes seguem acontecendo, mesmo que o custo para acabar com elas tenha sido estimado pela ONU em pouco mais de 10 dólares mensais por pessoa (160 dólares ao ano)[3]. Esta quantia seria muito facilmente arrecadada ou redistribuída de outras fontes, já que o problema nunca foi a falta de recursos e, sim, a sua má distribuição. Enquanto muitos passam fome, outros tantos desperdiçam comida e outros recursos de várias outras maneiras, algumas delas até mesmo sem percebermos.

Em sua mais recente Encíclica, o Papa Francisco cita um plano para a criação de um Fundo Mundial de combate à fome com recursos que deixariam de ser gastos com armas e outras despesas militares. O problema é que o sucesso dessa iniciativa depende da boa vontade e do altruísmo dos Senhores da Guerra do mundo atual, o que parece bastante improvável considerando a sua dedicação para matar pessoas em vez de salvá-las. Mas há uma alternativa viável: trocar os Senhores da Guerra pelos Senhores da Saúde, os quais, pela lógica, deveriam ser muito mais abertos a qualquer iniciativa que visasse reduzir o número de mortes evitáveis ou desnecessárias. Os gastos com medicamentos[4], pelo menos nos EUA, são quase tão grandes quanto os gastos militares[5] e, se considerarmos os gastos com exames e outras tecnologias, é possível até superar os gastos militares. Como sabemos, há uma significativa proporção de desperdício nas intervenções médicas e, ainda que as causas da fome sejam complexas, reduzir o desperdício em medicina poderia economizar muito dinheiro, o qual poderia ser usado para salvar milhões de vidas que são anualmente ceifadas pela fome.

O interessante dessa proposta é que ninguém deixaria de receber aqueles tratamentos absolutamente necessários. Por outro lado, poderíamos deixar de usar medicamentos naquelas situações onde não está claro que eles reduzam a mortalidade[6] (como nas milhões de pessoas jovens e de baixo risco que usam sistematicamente estatinas como prevenção cardiovascular primária), optando por usá-los apenas em pessoas nas quais seu benefício esteja bem demonstrado (como nas pessoas de alto risco ou que usam estatinas como prevenção secundária). Poderíamos parar de receitar antidepressivos a cada vez que alguém se queixa da vida, deixando para usá-los apenas nos casos graves ou quando o tempo e as medidas não farmacológicas tivessem falhado. Poderíamos parar de receitar medicamentos caríssimos e que não demonstraram qualquer benefício clinicamente significativo em doenças como a demência de Alzheimer. Poderíamos tentar reduzir cientificamente as indicações de medicamentos descobrindo as situações em que são realmente úteis para as pessoas que os utilizam, evitando aquelas indicações com NNTs* enormes (p. ex., uma indicação com NNT de 100 indica que 99% dos pacientes não se beneficiam com a intervenção). Poderíamos questionar os custos exorbitantes e imorais de novos medicamentos, como os anticorpos monoclonais, e reduzir o seu uso, já que esse alto custo não reflete um grande benefício clínico individual para os pacientes. Poderíamos optar pela sobriedade e parar de gastar fortunas em congressos “científicos” majestosos que acabam sendo financiados pela indústria para a promoção de seus produtos, aumentando mais ainda o desperdício. Poderíamos ainda parar de pedir exames caros e desnecessários e, em vez disso, conversar com os pacientes e examiná-los adequadamente, deixando os exames apenas para os casos em que fossem realmente úteis.

Para finalizar, podemos analisar o caso específico de um medicamento redutor de colesterol, como o Lipitor da Pfizer, o qual gerou um faturamento de quase 2 bilhões de dólares somente no “fraco” ano de 2019[7]. Se reduzíssemos em apenas 10% as suas indicações (por exemplo, entre aquelas pessoas de baixo risco) economizaríamos cerca de 160 milhões de dólares por ano, o que, segundo os dados da ONU, seria suficiente para evitar que cerca de 1 milhão de pessoas morressem de fome. O mais importante é que seria bastante plausível reduzir muito mais do que 10% no uso não apenas de todas as estatinas, mas de vários outros medicamentos, potencialmente gerando bilhões de dólares que engordariam um Fundo de combate à fome no mundo. E, em todo caso, evitaríamos não apenas as mortes por fome, mas também as mortes causadas por excessos de medicamentos. E o que torna mais bela esta proposta é que medicamentos que de outro modo não reduziriam a chance de morte de ninguém ao utilizá-los seriam convertidos em recursos que com toda certeza reduziriam a chance de um ser humano morrer de fome em algum lugar do mundo. 

*NNT, número necessário para tratar.


[1] https://www.theworldcounts.com/challenges/people-and-poverty/hunger-and-obesity/how-many-people-die-from-hunger-each-year/story

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Carestia_de_1983-1985_na_Eti%C3%B3pia

[3] https://www.weforum.org/agenda/2015/07/how-much-would-it-cost-to-end-hunger/

[4] https://www.iqvia.com/insights/the-iqvia-institute/reports/medicine-spending-and-affordability-in-the-us#:~:text=Medicine%20Spending%20at%20Selected%20Reporting%20Levels%2C%20US%24Bn&text=Total%20net%20payer%20spending%20in,over%20the%20past%20five%20years.

[5] https://www.statista.com/statistics/262742/countries-with-the-highest-military-spending/#:~:text=With%20defense%20spending%20totaling%20732,the%20United%20States%20ranked%20first.&text=The%20United%20States%20lead%20the%20globe%20in%20military%20spending%20in%202019.&text=With%20military%20outlays%20totaling%20732,year%2C%201.92%20trillion%20US%20dollars.

[6] https://bmjopen.bmj.com/content/9/4/e023085

[7] https://www.google.com.br/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.axios.com%2Flipitor-pfizer-drug-patent-sales-2019-6937cdfb-47f1-46bc-8cf0-39e6b88e235e.html&psig=AOvVaw0r75kcXCfUU03tLV8yffNw&ust=1605557946972000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCOix5tevhe0CFQAAAAAdAAAAABAa