O fetiche das vacinas

Que ninguém me interprete de forma apressada, pois sou um ferrenho defensor das vacinas. Não há dúvidas de que as vacinas fizeram maravilhas pela saúde da população ao longo dos últimos séculos e, principalmente, que elas podem continuar trazendo grandes benefícios para a humanidade nos próximos anos. Mas isso não significa dizer que basta uma substância ser chamada de “vacina” para que ela esteja imune (perdoem o trocadilho) a críticas, reflexões e análises científicas mais acuradas.

O termo “fetiche” se refere a qualquer coisa ou objeto ao qual atribuímos poderes mágicos ou sobrenaturais e para o qual prestamos algum tipo de culto. Em certa medida fazemos tudo isso com as vacinas quando simplificamos demais as coisas e deixamos de refletir de forma crítica sobre cada uma delas. Atribuímos poderes mágicos às vacinas quando afirmamos que é exclusivamente por causa delas que uma pandemia termina (sem lembrarmos de coisas como a imunidade natural, a evolução natural do vírus e o próprio tempo) ou quando dizemos que elas causaram um determinado desfecho clínico que não tenha sido nem mesmo testado nos estudos (como ao atribuirmos reduções na mortalidade em crianças sem que isso tenha sido sequer avaliado nos esquálidos estudos realizados). Além disso, ao colocarmos as vacinas em pedestais, prestamos um tipo de culto que nos impede de exercitar uma análise mais crítica sobre seus reais efeitos, riscos e limitações.

É importante termos sempre em mente que essa fama antiga e merecida das vacinas foi conquistada em um período da história da ciência e da medicina em que grandes homens – como Salk e Sabin – faziam ciência de verdade em defesa da saúde da população. Salk e Sabin testaram suas vacinas em milhões de pessoas antes de conquistarem seu lugar entre os grandes homens da história da medicina. Foi exatamente esse cuidado em testar suas vacinas de maneira honesta e incansável que pôde atribuir a elas o status de “sagradas”. Como essas vacinas da poliomielite, há outras vacinas sagradas que conquistaram esse status depois de muitas décadas de uso, como as vacinas do sarampo, da raiva e da hepatite, entre várias outras. Veja bem: o status de vacina sagrada é conquistado depois de muito tempo de uso – de certa forma retrospectivamente – após a comunidade científica avaliar os pontos positivos e negativos das vacinas usadas na população. Nenhuma vacina nasce sagrada, por maior que seja a campanha de marketing envolvida em sua produção e comercialização.

No caso das vacinas atuais, como as do SARS-CoV-2, todos torcemos para que elas venham a ser consideradas sagradas daqui a alguns anos, quando seus reais efeitos e potenciais riscos forem mais bem conhecidos e mensurados. E isso é especialmente verdadeiro para quem, como eu, optou por receber essas vacinas ainda novas e pouco conhecidas. O que não deveríamos fazer desde já é misturar as coisas e colocar essas vacinas atuais (ainda que potencialmente boas) no mesmo “saco” das vacinas sagradas, sob pena de confundirmos as coisas e macular nossas vacinas sagradas (status que foi arduamente conquistado) com eventuais problemas ou ineficiências das vacinas atuais que ainda podem ser detectados daqui a algum tempo. Se daqui a alguns anos elas continuarem apresentando um perfil positivo de efetividade e efeitos colaterais, aí sim elas poderiam ser levadas ao panteão das vacinas sagradas. O tempo, como sempre, é o grande depurador das invenções da humanidade.

Atribuímos poderes mágicos às vacinas quando dizemos que uma criança saudável foi salva por ter recebido a vacina sem reconhecermos que o risco de morte por covid em uma criança saudável é mínimo. Além disso, prestamos um culto cego às vacinas quando atribuímos a elas todos os desfechos positivos ocorridos após a vacinação, mas nos negamos a atribuir a elas qualquer responsabilidade pelos resultados negativos, ainda que incomuns, como os casos de miocardite demonstrados em determinados grupos e faixas etárias.

É apenas ao evitarmos o tratamento das vacinas como fetiche e as considerarmos como qualquer outra intervenção médica que podemos preservar o seu caráter sagrado conquistado ao longo dos anos. Tratar as vacinas com a mesma postura crítica que deveríamos ter com as outras intervenções médicas apenas aumentaria a confiança da população nas vacinas e na medicina em geral. Além disso, ao negarmos que as vacinas podem ter efeitos colaterais e que o perfil de risco-benefício pode ser diferente em alguns grupos, deixamos de aproveitar o melhor das vacinas e de implementar um cuidado mais adequado às características de cada grupo da população.

Outro problema ainda mais sério é que, ao atribuirmos todos os louros do combate à pandemia às vacinas, nos esquecemos de tudo o que nos trouxe até aqui e do que deveríamos fazer para evitar ou enfrentar novas crises semelhantes a esta. Assim, preferimos acreditar no pensamento mágico de que criaremos novas vacinas em tempo recorde para eventuais novas ameaças microbiológicas e nada estamos fazendo para definir com clareza as origens desta pandemia, para reduzir o impacto devastador da humanidade sobre os recursos naturais que nos coloca em contato com novas ameaças, para diminuir a vergonhosa disparidade socioeconômica entre os mais ricos e os mais pobres da sociedade, para acabar com o apartheid vacinal e o descaso com as populações de outros locais que sofrem há décadas com epidemias locais (p. ex., varíola do macaco, dengue, malária, etc.) que acabarão sendo transmitidas ao ocidente rico e para recuperar a credibilidade da comunidade médico-científica seriamente abalada por décadas de uma ciência comprometida por interesses comerciais.

Questionar o tratamento recentemente dado às vacinas é antes de mais nada defender as vacinas e a própria Ciência (maiúscula). Tratar as vacinas como um fetiche em nada interessa aos pacientes, os quais desejam receber vacinas seguras e efetivas, o que obviamente só é possível se elas forem testadas com a honestidade científica que qualquer intervenção médica merece receber. Tratar as vacinas como um fetiche inquestionável também não interessa aos médicos, os quais buscam entre todas as alternativas aquela que mais pode beneficiar o paciente à sua frente, o que novamente só pode ser possível se as vacinas forem adequadamente questionadas e testadas. A própria ciência não pode admitir que qualquer intervenção – sejam as vacinas ou qualquer outra – esteja fora do alcance de seu imparcial escrutínio. Enfim, tratar as vacinas como fetiche só interessa aos grandes laboratórios produtores de vacinas e aos políticos incompetentes – e, em muitos casos, financiados pela indústria farmacêutica – para os quais pode ser vantajoso que as esperanças da população estejam todas nas vacinas. Poderes sobrenaturais são atribuídos a santos e outras entidades afins, mas já deveria estar claro que os políticos e a indústria estão bem longe de qualquer sombra de santidade.