A uberização da medicina

A vida moderna tem dessas coisas. O antigo “carro de praça” agora é chamado através de um clique no smartphone. A lógica é a mesma: queremos ir de um lugar a outro e pagamos a alguém para fazer o nosso transporte. Até pouco tempo atrás pagávamos diretamente a um motorista de táxi o que hoje pagamos virtualmente a uma empresa que administra um dos vários aplicativos de transporte de passageiros. O valor pago é depois dividido entre a empresa e o motorista conforme algum tipo de acordo prévio. Há quem considere estes aplicativos verdadeiras maravilhas da vida moderna. Há também quem veja nisso um caso evidente de exploração e aviltamento da profissão de motorista. Mas que relação isso pode ter com a medicina?

No início da pandemia houve um apelo para que as pessoas permanecessem em casa. Com este confinamento domiciliar e com a necessidade de as pessoas obterem algum tipo de ajuda médica foi regulamentada de maneira temporária pelas entidades médicas a telemedicina. De alguma maneira, muitos médicos sempre permitiram o acesso remoto a seus pacientes por telefone, e-mail ou aplicativos de mensagens. O que se fez foi permitir que várias plataformas virtuais intermediassem o contato – outrora físico – entre médico e paciente. Com isso, muitos planos de saúde e o próprio Ministério da Saúde tiveram que pagar caro para contratar os serviços de empresas que fazem essa intermediação do contato médico. Aqui também há quem considere uma maravilha poder fazer “consultas médicas” através de chamadas de vídeo. Ao mesmo tempo, existem aqueles que, não por simples apego à tradição, acreditam que a manutenção da telemedicina nos moldes atuais após o fim da pandemia pode fazer mal à saúde da população.

Um dos problemas da telemedicina é a questão do acesso. Quem a defende alega que o acesso aos médicos aumentará. O problema é que o acesso a médicos através da telemedicina realmente aumentará para as pessoas mais ricas e jovens, que têm planos de saúde abrangentes e acesso a tecnologias de última geração. Por outro lado, os pacientes mais velhos e mais pobres (e, portanto, os que mais precisam de cuidados) podem ter ainda mais dificuldade para chegar a um médico, seja por não dominarem a tecnologia ou porque parte dos serviços atualmente disponíveis pode passar a ser ofertado apenas virtualmente. A crise atual deixou claro o abismo existente entre a educação pública e privada, com uns realizando atividades virtuais desde o início da pandemia e outros ameaçando perder o ano letivo por falta de recursos. Nesse aspecto, também a telemedicina arrisca aumentar o abismo na saúde entre ricos e pobres.

Ao se aumentar a oferta de cuidados para quem menos precisa podemos aumentar os riscos relacionados ao excesso de cuidados de saúde. Além disso, aumentar o acesso não significa melhorar a qualidade dos cuidados. Muito pelo contrário: como um contato virtual é imensamente mais limitado que uma consulta de verdade, corre-se o risco de aumentar o número de exames desnecessários, de diagnósticos equivocados e de tratamentos potencialmente prejudiciais. Como já foi demonstrado em um estudo da Universidade John Hopkins que falhas relacionadas aos cuidados de saúde causam, apenas nos Estados Unidos, centenas de milhares de morte todos os anos, é preocupante imaginar os riscos à saúde associados ao uso indiscriminado de consultas virtuais.

É importante reconhecer que a tecnologia pode ser um aliado útil para a medicina, como fica evidente na questão de exames complementares sofisticados que, quando usados com bom senso, podem ser de grande valia. Além disso, o uso das tecnologias de comunicação já se mostrou uma grande ferramenta para que os profissionais que trabalham em localidades distantes possam ter acesso e contar com o apoio de profissionais e serviços de grandes centros urbanos. Acontece que unir profissionais médicos e transmitir dados como exames de imagem é radicalmente diferente de pretender substituir o encontro físico entre um médico e um paciente de carne e osso por uma “consulta virtual”.

A evolução tecnológica é uma realidade inevitável, mas a pressa em colocá-la em prática neste momento talvez se deva mais a interesses comerciais do que a uma necessidade real e imediata. A pandemia como a vimos até agora não demora a passar, e é possível que a evitação dos consultórios médicos pelos pacientes tenha sido exagerada. Se daqui a alguns anos as consultas médicas forem todas realizadas por “contato” virtual, muito será perdido, principalmente para o paciente, que é o maior beneficiado com o ritual da consulta médica. É possível que as novas gerações nem sintam falta de serem tocadas – física e mentalmente – por um bom médico. Pela mesma lógica, gerações crescidas em meio a YouTubers e tecnologias de “realidade virtual” nunca sentirão falta de uma suíte de Bach interpretada em uma bela igreja barroca. A evolução em si pode ser inevitável, mas o seu ritmo e os caminhos escolhidos somos nós que determinamos agora.