Presos ao lockdown

Uma das coisas que ficam mais evidentes à medida que o tempo passa e vão surgindo mais informações sobre a pandemia é que ela é absolutamente heterogênea, afetando de maneira muito diferente os vários países e as diversas regiões dentro do mesmo país. Na Itália, a epidemia da Lombardia não é nem parecida com a da região da Calábria e de todo o sul do país. Nos Estados Unidos, a região de Nova York foi afetada de maneira muito mais grave que a região central do país, e mesmo a Califórnia também foi muito menos castigada. No Brasil, isso também não está sendo diferente, enquanto há regiões muito afetadas, como Ceará, Amazonas e São Paulo, há regiões com pouca atividade da doença, como as regiões sul e centro-oeste. Ainda não está claro quais são os fatores que levaram a essa disparidade, mas está cada vez mais evidente que epidemias de intensidade tão diferentes em cada região não deveriam ser tratadas da mesma forma.

Recentemente, a secretária de saúde da Noruega veio a público afirmar que, a partir de análises retrospectivas, ficou evidente que o lockdown não teria sido necessário para o enfrentamento da crise. Ela cita que o nível de contagiosidade da doença (R0) já tinha sido reduzido de cerca de 2 para 1 mesmo antes do lockdown, apenas com as medidas tomadas pela própria população como lavagem de mãos, evitação de aglomerações e etiqueta respiratória. A partir desses dados, ela indicou que a resposta do governo pode ter sido exagerada e que, em uma possível segunda onda ou em novas epidemias, poderia optar por medidas menos restritivas para conseguir controlar o surto com menos efeitos colaterais sociais e econômicos. É interessante notar que a Noruega tem pouco mais de 5 milhões de habitantes e teve 236 mortes por Covid-19 até aqui. Se usarmos o mesmo raciocínio, talvez devêssemos repensar a resposta de um estado como o Rio Grande do Sul, que apresenta uma população de mais de 11 milhões de habitantes e teve ainda menos mortes que na Noruega (213 até esta data)? Ou seja, nosso número de mortos é proporcionalmente apenas a metade daquele da Noruega. Mas o que leva o governo da Noruega a repensar as suas medidas é reconhecer que as consequências da pandemia envolvem muito mais do que apenas o número de mortos.

Em um recente artigo, Vinay Prasad e Jeffrey Flier reforçam a necessidade de individualização das respostas à pandemia conforme a realidade de cada local, evitando as soluções que sejam “a mesma coisa para todos”. Eles observam que o vírus causa doença por quatro mecanismos principais, e a resposta adequada à crise deveria considerar todas elas. O primeiro mecanismo é o mais evidente: o efeito direto do vírus no organismo. Além de tudo que os médicos já têm feito para abordar o problema, talvez o que fique de ensinamento para novas crises seja tentar compatibilizar a Medicina Baseada em Evidências com as restrições evidentes para a realização de pesquisas durante uma pandemia. No caso específico do Brasil, se poderia acrescentar a necessidade de jamais politizar a ciência, o que torna ainda mais difícil a realização de pesquisas. O segundo mecanismo é a sobrecarga dos sistemas de saúde, o que pode aumentar o número de mortes tanto por erros causados por um sistema caótico, como por restrição de cuidados para as pessoas que apresentam outros problemas clínicos e deixam de ser atendidas. O terceiro mecanismo de doença seria a cobertura midiática sensacionalista, pois as pessoas vítimas do pânico em massa adoecem mais e podem deixar de procurar ajuda com medo de se expor ao vírus. O quarto mecanismo de doença se refere aos efeitos colaterais das medidas restritivas adotadas no combate à pandemia: desemprego em massa, recessão econômica e aumento das desigualdades socioeconômicas. Reconhecer este mecanismo não significa “colocar a economia na frente da saúde” nem “preocupar-se mais com o dinheiro do que com as vidas”. Pelo contrário, trata-se de uma visão mais ampla e cujos benefícios só podem ser evidentes no longo prazo.

O Brasil é um país enorme e muito desigual, e isso se reflete na desigualdade da pandemia, com os sistemas de saúde de alguns locais já sobrecarregados, enquanto outros estão ameaçados pela ociosidade. É evidente que a resposta inicial deve ser focada nos doentes e na evitação das mortes diretas pelo vírus, mas desconsiderar essas outras facetas do problema pode também ser, em longo prazo, bastante prejudicial. É importante adequar as medidas de combate à pandemia à realidade de cada local, da mesma forma que adequamos um tratamento médico à realidade social e às preferências de cada paciente: altas doses para doentes graves e doses menores para “doentes” assintomáticos. Afinal, a diferença entre o remédio e o veneno pode ser apenas a dose administrada.

https://www.thelocal.no/20200522/norway-could-have-controlled-infection-without-lockdown-health-chief