Nós, os “prescritores”

Devo confessar que não me atraem aqueles congressos médicos pomposos, onde um mínimo de ciência acaba sendo ofuscado por um tanto de glamour e propaganda. Tais eventos custam uma fortuna, o que no meu entendimento é um gasto absolutamente inútil e desnecessário. Considero até mesmo que representem um escárnio, pois sabemos das dificuldades por que passa grande parte da população e nosso sistema de saúde como um todo. Sei que não é o papel do establishment médico resolver diretamente os problemas sociais da população que estejam fora do âmbito da saúde, mas poderíamos ao menos não demonstrar tamanha indiferença. Tais eventos deveriam ser sóbrios e modestos, se é que deveriam existir neste formato. Em uma época de tecnologias incríveis, poderíamos muito bem acessar as novidades científicas à distância. Outra possibilidade seria aguardar apenas mais alguns dias até que tais novidades fossem publicadas e pudéssemos analisá-las de forma serena e cuidadosa, sem o festival de luzes que envolve tais eventos e que serve para distrair e inebriar os congressistas.

Posso prever com um tanto de ironia que muita gente sentiria falta desses eventos chiques e supérfluos. Afinal, sem eles não poderíamos ostentar nossos lindos crachás. Isso mesmo. Aqueles que nos identificam como “prescritores”! Eles servem para nos diferenciar do reles cidadão comum que não tem o direito a prescrever medicamentos. Sempre fico chocado ao ver médicos estampando crachás de “prescritores” nesses eventos. Segundo a ótica dos congressos médicos – e, portanto, segundo a ótica da indústria farmacêutica que patrocina boa parte deles – a humanidade parece se dividir entre os “prescritores” e os “não prescritores”. Os prescritores seriam aqueles seres abençoados pelo direito de prescrever remédios e gerar lucros indecentes à indústria farmacêutica e, portanto, cuja bajulação deve ser buscada a qualquer preço, o que pode incluir desde taças de champagne até presentinhos variados e chamados de “Doutor, Doutor” a todo instante. Pelo sucesso de tais eventos, parece haver muita gente que gosta de ser bajulada e de ser reduzida ao papel de “prescritor”.

Me pergunto quando foi que deixamos de ser médicos e viramos meros “prescritores”? Não sei exatamente há quanto tempo os médicos aceitaram pateticamente essa mudança e passaram a ser identificados como “prescritores”. Sei apenas que há alguns anos as coisas eram bem diferentes. Éramos médicos! Pessoalmente, ainda me identifico como médico e jamais carregaria ao peito um cartazinho ridículo que me identificasse como “prescritor”. Médicos são muito mais que prescritores. Médicos são “conselheiros”, “amigos”, “escutadores”, “acolhedores”, “confidentes”, “curadores”, “enxugadores de lágrimas”, “diagnosticadores”, “abraçadores”, “esclarecedores”, “prognosticadores”, “pesquisadores”, entre tantas outras coisas importantes. O ato da prescrição de medicamentos abrange apenas uma ínfima porção de nossa atividade. Uma porção que recebe muito mais atenção do que deveria e que pode nos distrair de tantas outras coisas importantes que podemos oferecer às pessoas.

Talvez muitas pessoas não percebam a gravidade de aceitarem a troca da identificação de “médicos” para “prescritores”, mas isso representa uma afronta à boa Medicina e um evidente aviltamento da profissão. Até mesmo o Conselho Federal de Medicina já se posicionou contrariamente a essa aberração[i]. Para começar, ela reduz a atividade médica ao ato da prescrição, ao mesmo tempo em que dá a entender – erroneamente! – que o médico é nada mais que um dócil preenchedor de receitas a serviço da indústria farmacêutica. Além disso, se o prescritor é aquele que está apto à prescrição, devemos ficar atentos, pois a “prescrição” é um termo de conotações ambíguas que pode significar tanto o preenchimento da receita médica como a possibilidade de “sermos prescritos”, o que significa “deixar de ter validade”, “cair em desuso” ou, até mesmo, “caducar”.

Torço para que os médicos ainda se rebelem contra este costume abjeto de serem identificados como “prescritores”, o que teria repercussões que vão muito além da simples palavra em um crachá e que fariam muito bem à nossa profissão. É bem possível que a indústria esteja apenas nos preparando para um futuro em que ela se aliará a outras profissões ou a novas tecnologias e poderá vender seus produtos diretamente ao consumidor sem precisar da intermediação dos “prescritores”! Este pode ser um futuro bem menos improvável do que se imagina. Pensando bem, talvez o crachá de prescritor tenha mesmo algum sentido, pois quem o utiliza pode estar colaborando inadvertidamente para a prescrição e ostracismo de toda a classe médica. Vamos mal, muito mal!


[i] https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/pareceres/BR/2018/21_2018.pdf

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