Uma dose de Ivan Illich

Mesmo tendo nascido em Viena e estudado originalmente teologia, Ivan Illich considerava-se um peregrino errante. Com a mesma facilidade com que vagava pelo mundo compartilhando suas ideias, ele também se ocupava de assuntos tão diversos como educação, saúde e transportes, além de dominar vários idiomas, o que alimentava suas ideias com fontes mais diversas do que muitos outros pensadores. Apesar de seu livro Nêmesis da medicina – a expropriação da saúde ter apresentado uma crítica contundente ao sistema de saúde, a verdade é que a medicina não era o foco principal do pensamento de Illich, mas, sim, a sociedade industrializada que se estabelecia com seus excessos e sua visão demasiadamente centrada no lucro e nas instituições em detrimento das pessoas. A radicalidade de sua ideia de que a medicina havia se tornado uma ameaça para a sociedade rendeu a ele um exército de críticos. Por outro lado, as ideias originais e proféticas do livro acabaram por influenciar gerações de médicos e pensadores da medicina.

Uma das principais ideias deste livro é a percepção de que a medicina e o sistema de saúde também podiam causar danos à sociedade em sua tentativa de oferecer cuidados. Illich considerava que esse dano iatrogênico ocorria em três níveis: clínico, social e cultural. A iatrogenia clínica se refere aos efeitos prejudiciais diretos das intervenções médicas, como os efeitos colaterais de medicamentos, mas também ao uso frequente de intervenções sem efetividade comprovada. A iatrogenia social está ligada principalmente à medicalização crescente de problemas inerentes à vida diária, como a tristeza e a velhice, mas também dizia respeito ao dano causado à sociedade pelo gasto excessivo em saúde por meio de uma “medicalização do orçamento”, deixando de aplicar esses recursos em áreas que poderiam ser mais importantes, como saneamento básico, trabalho e alimentação. A iatrogenia cultural se refere ao modo como a medicina pode reduzir a saúde das pessoas ao diminuir sua autonomia para encarar os sofrimentos inevitáveis da vida como a dor, a doença e a própria morte, capacidade esta que, para Illich, representava o próprio ideal de saúde.

Após a apresentação dessa ideia da iatrogenia em seus vários níveis, Illich pôde introduzir na medicina seu conceito de “contraprodutividade paradoxal”. Illich usa como exemplo para ilustrar esta contraprodutividade a área dos transportes: quando algumas sociedades modernas optaram pelo excesso no uso do transporte rodoviário, o que se viu em muitos lugares foi a contraprodutividade se manifestando nos engarrafamentos diários das grandes cidades. No caso dos transportes, a opção pelo excesso e pelo transporte individual e menos efetivo acaba por reduzir a capacidade de locomoção geral da sociedade. Em medicina isso também ocorre de maneira análoga: ao optarmos pelo excesso de intervenções e por tratamentos individuais de efetividade limitada, deixamos de investir em medidas de saúde pública efetivas que beneficiariam toda a população e retiramos recursos de saúde daquelas pessoas mais doentes e vulneráveis, exatamente as que mais necessitam deles.

Um terceiro conceito que Illich introduz em seu livro é o surgimento de um “indivíduo estatístico”, o qual ficaria subordinado às necessidades superiores da coletividade. Este indivíduo estatístico não tem valores ou preferências pessoais, sendo submetido aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos destinados a um grupo do qual supostamente faz parte. A ideia de Illich ficou bem mais evidente na atualidade quando as estatísticas dominaram a medicina e passamos a tratar pessoas individualmente com base em estudos aplicados a grupos de pessoas e cujos resultados não deveriam ser diretamente extrapolados para o nível individual.

Muitas dessas ideias de Illich apresentadas ainda na década de 1970 se mostraram corretas e muitos de seus temores não apenas se materializaram como podem ter se confirmado até piores. Em relação à nossa sociedade atual, Illich ficaria chocado com a rapidez com que nos entregamos à virtualidade das tecnologias digitais. Por certo que várias de suas críticas se aplicariam a esta nova sociedade digital. Na área da medicina, não apenas muitas de suas ideias estavam corretas, como também é possível identificá-las na origem de vários movimentos atuais, como o Too Much Medicine, o Choosing Wisely e a própria Medicina baseada em Evidências. As ideias de Illich estão mais vivas que nunca. Além de ser dono de um carisma indiscutível, Illich era um sujeito magro e muito alto. É possível que essa estatura exuberante o ajudasse a enxergar mais longe do que a maioria das pessoas comuns.