Dos delineamentos cretinos – II

Uma das coisas mais incríveis da quase-ciência praticada pela indústria farmacêutica é a maneira como os estudos podem ser milimetricamente ajustados para alcançar os objetivos comerciais da empresa sem a menor preocupação com a ciência propriamente dita. A partir do momento em que as ferramentas científicas foram dominadas pelos profissionais, ficou bastante fácil adequar os delineamentos dos estudos aos objetivos comerciais da indústria. Afinal, o interesse desses estudos da indústria nunca foi o de descobrir uma “verdade científica” que pudesse ajudar a humanidade, mas simplesmente gerar lucros e cumprir uma etapa burocrática exigida pelos reguladores. Isso faz com que os estudos sejam claramente fajutos e ainda assim mantenham aquelas palavrinhas mágicas como “randomizado”, “duplo-cego” ou “controlado com placebo”, que ainda iludem muita gente.

Um exemplo recente vem da área da psiquiatria. A Acadia Pharmaceuticals, o laboratório responsável pelo antipsicótico atípico pimavanserina, está se esforçando para obter a aprovação do Food and Drug Administration (FDA) para seu mimo terapêutico. O objetivo da empresa é conseguir a aprovação da droga para o tratamento de quadros psicóticos relacionados à demência de Alzheimer, um nicho de mercado gigante e altamente lucrativo. Para alcançar seu objetivo a empresa parece ser capaz de qualquer coisa, até mesmo trucidar a ciência e expor-se ao ridículo. O problema, como veremos, é que mesmo estudos assim tão ruins são capazes de levar uma droga como essa a ser aprovada e transferir aos cofres da empresa bilhões de dólares que poderiam ser usados em intervenções realmente eficazes e não necessariamente medicamentosas para essas pessoas e famílias já tão desgastadas pelo enfrentamento dessa doença tão triste. Vamos à “ciência”.

Há dois estudos importantes e que chamam a atenção em relação ao uso da pimavanserina para tratar sintomas psicóticos em pessoas com Alzheimer. O primeiro deles foi publicado no NEJM[1] e, embora seja “randomizado”, “duplo-cego” e “controlado com placebo”, é também extremamente cruel com os pobres pacientes, pois começa com um período de 12 semanas em que todos os pacientes recebem o medicamento ativo e apenas aqueles que respondem bem ao medicamento passam para a segunda fase. Ou seja, neste momento, o que ocorre é um “pré-estudo” ou uma “pré-seleção” em que os pacientes que não respondem ao medicamento são sumariamente excluídos do estudo, permanecendo apenas aqueles com resposta favorável, o que evidentemente distorce totalmente a comparação posterior com placebo e impossibilita a generalização dos resultados para a vida real. Como se não bastasse isso, na segunda etapa do estudo os pacientes passam imediatamente para uma fase em que são divididos em dois grupos: um que continua recebendo o medicamento (ao qual já tinham apresentado boa resposta!) e outro em que o medicamento é abruptamente suspenso e os pacientes – agora em abstinência da droga – passam a receber um placebo inerte. É evidente que o cérebro desses pacientes terá se adaptado aos medicamentos ao longo dessas 12 semanas e que a súbita ausência do medicamento pode, por si só, ser causa de quadros psicóticos. Em resumo: é uma comparação desleal e vergonhosa desde o início e é de arrepiar que pesquisadores concordem em participar disso e, para piorar, que um protocolo tão cruel com os doentes tenha sido aprovado por um comitê de ética.

O segundo estudo[2], igualmente patrocinado e conduzido pelo próprio laboratório e por pesquisadores eivados de conflitos de interesse, foi publicado no The Journal of Prevention of Alzheimer Disease e beira o cômico pela desfaçatez com que os pesquisadores alteraram o desfecho de interesse do estudo para conseguir demonstrar o efeito não demonstrado originalmente. Como fica fácil de observar abaixo e no registro do estudo no site clinicaltrials.gov[3], o desfecho de interesse original era a diferença entre os efeitos do medicamento e do placebo com 12 semanas de evolução, mas isso foi alterado para um período de 6 semanas sem qualquer justificativa. A explicação para essa troca fica evidente ao se observar o gráfico acima no qual o ponto de corte de 6 semanas é o único ponto onde há uma diferença significativa entre o medicamento e o placebo (com 12 semanas não houve qualquer diferença!). A questão é que, como mostra o quadro abaixo, a modificação do desfecho primário foi feita quase um ano após os dados terem sido coletados e analisados. Ou seja, o novo desfecho foi escolhido a posteriori conforme os dados coletados, o que configura uma conduta absolutamente anticientífica e fraudulenta.

Alguém dirá – mais uma vez o prevejo – que tais estudos são exceções, mas o problema é que essas exceções estão virando a regra nos estudos patrocinados e conduzidos pela indústria, bastando que se olhe atentamente para os detalhes de protocolos, delineamentos, alterações, conflitos de interesse, etc. Além disso, esses péssimos estudos são publicados nos principais periódicos científicos médicos, servem de base para a análise dos medicamentos no FDA e alimentam (e comprometem) nossas metanálises. O problema evidente é que não basta que um estudo seja “randomizado”, “duplo-cego” e “controlado com placebo”. Um estudo tem que ser justo e honesto antes de qualquer outra coisa, sob pena de afundarmos cada vez mais no quesito confiança da população em todo o sistema médico-científico.

É evidente que muitos pesquisadores não concordariam com protocolos e condutas científicas como essas mostradas nesses estudos. São profissionais que se esforçam para fazer ciência séria e de qualidade em um mundo que cada vez mais prioriza o lucro em detrimento da verdade científica. O problema é continuarmos cegos para o óbvio e calados enquanto este tipo de ciência predatória grassa impunemente e ameaça a própria saúde da população, como neste caso da pimavanserina, cuja aprovação está sendo analisada pelo FDA. É preciso perceber que, ao dependermos cada vez mais do financiamento da indústria, acabamos por criar uma espiral autodestrutiva em que este dinheiro da indústria gera uma produção científica distorcida que visa aumentar ainda mais o lucro da indústria, o qual produzirá mais ciência distorcida e mais lucro ad infinitum. Ou seja, na prática a ciência deixou de ser uma honesta empreitada em busca da verdade científica que ajude os pacientes a viver melhor e passou a ser uma ferramenta altamente eficaz para alavancar lucros indecentes de empresas multibilionárias. O caminho adiante é nós que escolhemos.


[1] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2034634

[2] https://link.springer.com/article/10.14283/jpad.2018.30

[3] https://clinicaltrials.gov/ct2/history/NCT02035553?A=1&B=6&C=Side-by-Side#StudyPageTop