A pororoca dos cuidados de saúde

Um artigo recente da New Yorker compartilhado pela Slow Medicine Brasil trouxe uma discussão muito pertinente: a possibilidade de aceitação mútua e convivência pacífica entre a medicina hegemônica tradicional e as várias práticas integrativas. O artigo conta a história de várias pessoas que consideram ter-se beneficiado com essas práticas complementares e de como os médicos costumam ser descrentes em relação a esses benefícios. Pior ainda, o artigo mostra como os médicos podem ser até mesmo grosseiros ao ouvirem que os pacientes procuraram formas alternativas de tratamento para si. É que a medicina tem dificuldade em aceitar suas próprias limitações em relação ao cuidado integral do ser humano como corpo e mente, com seus valores, crenças e idiossincrasias.

Como diz o artigo, o famoso relatório Flexner sobre a medicina estadunidense e canadense no início do século XX parece ter dado origem a essa cisão entre as duas formas de cuidados de saúde. Se é verdade que o relatório melhorou a qualidade do ensino médico em geral, também é fato que ele afastou a medicina daquelas necessidades mais intangíveis e que só um médico menos matemático e mais humano pode detectar à beira do leito. Enquanto a medicina se aproximava como nunca do rigor científico, ela também se afastava da alma de cada pessoa que buscava ajuda. Por outro lado, as práticas ditas alternativas nunca deixaram de enxergar essas necessidades tão humanas. E isso explica como, apesar de serem consideradas pouco científicas, elas seguem ganhando adeptos a cada dia.

A medicina certamente ganhou qualidade científica com essa mudança no ensino e na prática clínica. Porém, essa melhora técnica talvez tenha ocorrido à custa de uma piora sensível nos aspectos humanos do cuidado médico. Ficamos mais rápidos, eficazes e produtivos, mas também mais frios e distantes dos pacientes tanto física como emocionalmente. Não se trata de considerar essas práticas complementares em pé de igualdade com a medicina tradicional ou com o rigor científico da Medicina Baseada em Evidências, mas simplesmente de respeitar as crenças dos pacientes e as visões alternativas de cuidados de outros profissionais que também desejam ajudar as pessoas. Talvez nunca devêssemos ter-nos voltado contra as práticas complementares, mas simplesmente ter aprendido a conviver de forma pacífica e respeitosa com elas. Afinal, se algo atualmente ameaça o futuro da boa medicina não é este conjunto de práticas integrativas, mas sim a hegemonia da indústria e das tecnologias digitais.

Enfim, ao adotarmos uma postura arrogante e desrespeitosa em relação às práticas integrativas estamos de certa forma desumanizando ainda mais os cuidados de saúde. O fato de aceitarmos que um paciente acredite nos benefícios dessas práticas e delas faça uso concomitantemente com a medicina tradicional em nada diminui a ciência médica, a importância da medicina ou a nossa própria capacidade como profissionais. Pelo contrário, apenas nos torna mais humanos ao reconhecer o lado humano de quem adoece e nossas próprias limitações. Além disso, essa união pode potencializar as chances de cura dessas pessoas quando a crença nas práticas complementares faz parte de seus valores e preferências. Se o relatório Flexner foi um divisor de águas na história da medicina, a verdade é que essas águas nunca deveriam ter-se afastado totalmente. Ao forçarmos essa divisão geramos um reencontro turbulento e acabamos criando uma verdadeira pororoca terapêutica que em nada ajuda aos pacientes, aqueles que mais precisam de harmonia.

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