A arte de burlar a ciência

A ciência é coisa séria. Trata-se de uma ferramenta que já trouxe inúmeros benefícios para a humanidade. O método científico, quando aplicado de maneira honesta e meticulosa, é capaz de iluminar o caminho da humanidade em direção a um mundo melhor. Nesse aspecto, a ciência médica tem importância ainda mais fundamental para a humanidade por lidar com a vida e o sofrimento humano. É exatamente por isso que deveríamos tratá-la com muito mais cuidado.

Existe uma verdadeira arte de burlar a ciência, para a qual precisamos estar sempre atentos ao avaliar os estudos científicos que alimentam a enxurrada de notícias sobre tratamentos milagrosos a que somos expostos diariamente. Um problema sério da medicina é que a imensa maioria dos estudos clínicos é atualmente financiada, delineada e conduzida – sem qualquer controle externo efetivo – pela própria indústria farmacêutica que poderá lucrar bilhões de dólares se o estudo sobre um medicamento demonstrar benefícios estatisticamente significativos, por mais clinicamente irrelevantes que sejam. Com tantos interesses em jogo, convenhamos que é improvável que todos os envolvidos tenham a honestidade e lisura que se espera de pesquisadores sérios.

Excetuando-se os casos de fraude explícita, os quais costumam vir à tona (embora às vezes tarde demais), existem várias maneiras como os pesquisadores podem enviesar os estudos e burlar o rigor da ciência e ainda assim parecerem cientificamente significativos a ponto de serem publicados nos “melhores” periódicos científicos do mundo. Aqui estão listadas apenas 10 dentre tantas artimanhas usadas por esses magos da pseudociência:

  1. Selecione muito bem os pacientes: escolha para seu estudo aqueles pacientes que têm mais chance de se beneficiar com o medicamento avaliado e menos chance de apresentar efeitos colaterais, mesmo que estes pacientes acabem sendo bem diferentes da população que usará a droga no futuro. Isso fará com que sua droga maravilhosa pareça muito mais eficaz e segura do que será na vida real. Um verdadeiro espetáculo de ilusionismo!
  2. Faça um test-drive: sim… em medicina não se diz test-drive, dando-se preferência ao termo run-in. A lógica do run-in é testar a droga antes mesmo de randomizar os pacientes do estudo, retirando da randomização todos aqueles pacientes que apresentaram efeitos colaterais já nessa fase inicial. Este artifício reduz muitíssimo a taxa oficial de efeitos colaterais da droga no estudo, o que irá turbinar a segurança (ainda que ilusória) da sua droga!
  3. Provoque crises de abstinência: outra maneira infalível de fazer sua droga parecer melhor que o placebo é a suspensão a sangue frio do tratamento. Este artifício não é incomum na psiquiatria. Neste caso, utiliza-se uma droga em todos os pacientes antes da randomização e, ao se randomizar metade dos pacientes para o placebo, o que fazemos na verdade é provocar sintomas de abstinência neste grupo que usou a droga e passou imediatamente a receber placebo. Como os sintomas de abstinência podem ser muito parecidos com os da doença, sua droga parecerá muito melhor do que é na verdade!
  4. Saia enquanto está ganhando: abuse das análises interinas (preliminares) dos desfechos. Assim, ao perceber que sua droga está se saindo melhor que o placebo em determinado momento, interrompa imediatamente o estudo (antes que a sorte mude!), alegue questões éticas que impediriam a continuação do estudo e comemore a vitória antecipada. Este artifício é mais ou menos como jogar uma moeda para cima apenas duas ou três vezes e, ao sair com a coroa para cima, alegar que tal moeda “sempre sai com a coroa para cima”. Todos sabem que a interrupção precoce dos estudos tende a exagerar o efeito das drogas, mas todo mundo faz isso e ninguém parece se importar!
  5. Escolha desfechos irrelevantes: se a sua droga for tão ruim que não consegue melhorar os sintomas da doença nem evitar desfechos clinicamente relevantes para as pessoas, use escalas mirabolantes mesmo que isso signifique que sua droga não trará qualquer benefício para a humanidade. Se você usar um número de pacientes suficientemente grande, mesmo mudanças clinicamente irrelevantes em uma escala qualquer poderão ser “estatisticamente significativas” e, como sabemos, essas duas palavrinhas fazem milagres na literatura médica!
  6. Se tudo der errado, abandone o barco à deriva: é relativamente fácil perceber quando um estudo dará com os burros n’água. Neste caso não há porque remar contra a correnteza nem se desesperar. Basta não fazer nada! Abandone o barco e deixe o estudo em aberto, jogue a data de conclusão do estudo para bem mais adiante e ninguém perceberá que sua droga era uma porcaria. Estudos que não foram concluídos e que permanecem em aberto (há muitos deles!) podem permanecer assim por muitos anos sem que seus dados vejam a luz do dia.
  7. Há sempre um chinelo velho para um pé torto: demonstrar de forma honesta que uma nova droga pode realmente beneficiar muita gente é uma coisa muito difícil. Mas sempre podemos encontrar um subgrupo, por mais chinfrim que seja, que poderia se beneficiar com aquela droga, mesmo que para isso tenhamos que usar aquelas famigeradas análises post-hoc de gosto duvidoso. Além disso, após colocarmos o pé na porta, basta apelar para as indicações off-label, oferecer algum estímulo para os médicos prescreverem mais a sua droga e comemorar o sucesso!
  8. Dê asas à imaginação: no caso de sua droga não ser nenhuma maravilha e você não conseguir demonstrar nenhum benefício para o desfecho primário escolhido no delineamento original do estudo, sempre existe a possibilidade de dar voltas à imaginação e distorcer as análises ou concentrar-se em eventuais benefícios secundários. Este spin bias ou viés de distorção é um viés adotado apenas na hora de redigir o texto do artigo a ser publicado. Se você não for bom nisso, não se preocupe: há sempre ghostwriters sedentos para contribuir com a “ciência” médica.
  9. Esconda aqueles dados inconvenientes: se tudo der errado e a sua droga for realmente uma droga que não serve para nada, você sempre terá a opção de manter seus dados sob sigilo. Alegue sigilo comercial e tranque os dados do estudo a sete chaves no cofre da empresa. Lá eles estarão seguros e não conspirarão contra a saúde financeira de sua empresa, embora a publicação seletiva de dados científicos atinja níveis preocupantes e ameace a saúde de toda a humanidade.
  10. Seja ostensivamente cara de pau: este é um viés moderno. É claro que um pesquisador honesto não poderia ter nenhum conflito de interesse (COI) econômico com a indústria que produz a droga testada, pois isso macula a lisura do processo científico desde o princípio. Atualmente, a lógica parece estar invertida e, ao invés de evitarmos os COIs, passamos a jogá-los na cara do leitor com declarações de conflitos enormes que mais parecem uma “ostentação de conflitos”. Isso faz parecer que a desfaçatez e o atrevimento são qualidades desejáveis no meio científico e que não existem pesquisadores honestos e capacitados para a realização dos estudos científicos. Sabemos que isso não é verdade e também sabemos que aqueles pesquisadores que trabalham direta ou indiretamente para a indústria ou que detêm as patentes dos medicamentos testados, jamais deveriam conduzir estudos científicos. Porém, como ninguém lê nem parece se importar com os COIs, jogue-os na cara do leitor como se essa transparência atrevida fosse sinônimo de lisura científica.

É evidente que ainda existem estudos e pesquisadores sérios e honestos, mas é triste admitir que eles têm se tornado cada vez mais escassos. A partir do momento em que transferimos de maneira tácita para a indústria farmacêutica a responsabilidade pela produção científica que avalia seus próprios produtos, não poderíamos esperar nada diferente disso. Mais do que descobrir algum tipo de verdade científica, a ciência médica atual se parece mais com a busca das maneiras mais criativas de manipular os estudos a fim de assegurar a aprovação de um medicamento a qualquer custo. Acabar com essa triste situação passa necessariamente por recuperarmos – nós profissionais e a medicina acadêmica – a seriedade na análise crítica dos estudos e a responsabilidade pela produção científica que envolve cada uma de nossas ferramentas de trabalho. E isso deve ser feito em benefício dos pacientes e da própria medicina, a qual está ameaçada pela crescente falta de credibilidade de sua produção científica. A ciência é coisa muito séria, mas o que estamos fazendo com ela até parece brincadeira.