A verdadeira peste

Um dos livros mais citados como sugestão de leitura para essa quarentena é A peste de Albert Camus, e os motivos são óbvios. O livro conta a história de uma cidade tomada pela peste a partir do ponto de vista de um médico e de suas reflexões sobre como aquilo afeta a cidade e as pessoas forçadas a adaptar sua vida à nova rotina. Parece que Camus teria usado a peste apenas como uma metáfora para o fascismo, este sim a verdadeira praga que assola o mundo e que, segundo o autor, fica adormecido em algum lugar esperando por voltar quando menos se espera.

Ao se referir à doença, em determinado ponto da história um personagem lamenta que o mal tenha se abatido sobre a cidade na forma de peste e não como um terremoto. Se assim fosse, a coisa se resolveria logo e, passado o tremor, contavam-se os mortos e seguia-se a vida. Mas é que viver em uma cidade tomada pela peste, realidade que começamos a conhecer agora, é diferente. Segundo um dos personagens, “mesmo quem não contrai a doença parece trazê-la no coração”. Este sentimento é fácil de entendermos com a onipresença da Covid-19 em nossa vida atual. O assunto está sempre presente, queiramos ou não. E é fácil entender o quanto isso influencia nossa maneira de pensar e viver e como, se considerarmos como vida aquela rotina que tínhamos antes da pandemia, de certa forma já estamos todos mortos.

Mas não podemos esquecer a metáfora de Camus. Várias decisões que estão sendo tomadas agora a toque de caixa pelos governos permanecerão influenciando nossas vidas por muito tempo depois da pandemia. Autores como Yuval Harari e o próprio Edward Snowden não cansam de alertar que talvez estejamos dando muito poder aos governos na tomada de decisões supostamente em nome da doença. Isso pode incluir desde a invasão de nossa privacidade em nome de maior “controle” da pandemia até mesmo a forma de fazer medicina, com a invasão da telemedicina e o afastamento físico entre médico e paciente. É preciso estar alerta para que o remédio não seja pior que a doença. Primum non nocere neste caso também é verdade!