A hipocrisia é a graxa da sociedade

É impossível viver em uma sociedade sem um mínimo de hipocrisia. A sociedade a necessita como uma máquina qualquer requer um mínimo de graxa para que sua engrenagem funcione adequadamente sem muito atrito entre as partes. Se não fosse essa graxa da hipocrisia estaríamos em constante conflito com vizinhos, amigos ou políticos imbecis. Minimizamos um pouco as diferenças em troca de um convívio mais amistoso. Mas é preciso ter cuidado, pois a graxa também tem uma conotação um pouco mais suja.

Vivemos atualmente em um verdadeiro festival de hipocrisia. Os mesmos políticos que conseguiram convencer a população a ficar trancada em casa, aparecem aglomerados em eventos, sem máscaras e cheios de abraços e apertos de mão. Podemos fazer filas nos mais variados locais de compras, mas não podemos encontrar amigos e familiares. Pessoas que ousarem deixar o confinamento e fazer um piquenique ao ar livre podem ser ameaçadas de prisão pelo mesmo governo que manda soltar os presos por falta de estrutura nas cadeias. A mesma pessoa que acha normal alguém sair à rua para passear com o cachorro duas ou três vezes ao dia pode ficar histérica quando uma avó implora para ver um neto de quem está literalmente morrendo de saudade. Não surpreende que os mesmos políticos do início do parágrafo tenham acabado por considerar essenciais serviços tão improváveis como as revendas de automóveis. Isso pode dizer muito sobre os valores de nossa sociedade.

Estes mesmos automóveis – que voltarão a ser produzidos e revendidos aos milhões – e seus nobres condutores causam cerca de 1,4 milhões de mortes no mundo todo anualmente. Isso significa que todos os anos morrem 7 vezes mais pessoas por causa dos automóveis do que pela pandemia atual. E isso se repete anos a fio, ao contrário da pandemia que só ocorrerá neste ano. Mas, por algum motivo, parece que as mortes por acidentes são menos importantes para as pessoas do que as mortes por coronavírus. Quando tornamos as revendas de automóveis um serviço essencial, o que fizemos, essencialmente, foi deixar claro que achamos “normal” a morte desses milhões de pessoas. Optamos por correr o risco de morrer em nome da possibilidade de andar em nossos belos carros. Achamos normal morrer por acidente automobilístico e não aceitamos morrer por um vírus respiratório qualquer.

Vivemos uma época realmente bizarra na qual podemos ficar aglomerados com pessoas estranhas na fila do caixa do supermercado, mas não podemos reunir familiares e amigos (com todos os cuidados necessários!) para celebrar a despedida de uma pessoa querida que tenha morrido. Não que em ambos os casos não exista um risco teórico mínimo de contaminação. A hipocrisia aqui é evidenciada pela opção que fazemos. Preferimos nos aglomerar no caixa do supermercado a nos reunir em volta do caixão de um amigo morto. Ou pelo menos aceitamos que tenham feito essa opção por nós, o que acaba dando no mesmo. Mas é preciso ter cuidado com tanta hipocrisia. Como toda graxa que vai se acumulando, chega um dia em que ela acaba aparecendo.