O termo “imunidade de rebanho” está na moda e se refere a uma situação em que uma determinada população adquire resistência imunológica a uma infecção. Isso ocorre quando o número de pessoas imunes à doença é suficiente para barrar a progressão da disseminação da doença. Trata-se mais de um conceito teórico do que de um valor absoluto a partir do qual a infecção deixa de se disseminar entre a população. Em parte, isso acontece por haver duas formas de aquisição de imunidade em uma população: a artificial e a natural. Na forma artificial, as pessoas adquirem a imunidade através da vacinação e, para calcular o ponto em que se atinge a imunidade de rebanho, utiliza-se uma fórmula que considera a capacidade de contágio de um microrganismo (tecnicamente conhecida como R0). É importante lembrar que cada microrganismo tem uma capacidade de contágio diferente, com alguns tendo uma capacidade bastante alta (como o vírus do sarampo) e outros tendo uma capacidade mais baixa (como o coronavírus atual). No caso da vacinação, utiliza-se um valor constante para o R0 e o resultado serve para que se tenha uma ideia da proporção de pessoas a serem vacinadas para que determinada população ficasse “imune” àquela infecção. Porém, isso serve mais para justificar uma determinada quantidade de vacinas do que para as situações em que uma determinada população enfrenta uma epidemia.
Ocorre que na vida real e nas epidemias a disseminação da infecção em meio à população se dá de maneira heterogênea e, assim, a contagiosidade do microrganismo vai mudando ao longo do surto. Isso acontece porque as pessoas diferem quanto à sua vulnerabilidade às infecções. Assim, as pessoas mais suscetíveis vão sendo infectadas primeiro, enquanto as menos suscetíveis vão ficando por último. Uma explicação é que algumas pessoas podem ter algum tipo de resistência geneticamente mediada à infecção[1]. Outra possibilidade é que a pessoa já tenha sido infectada por um microrganismo parecido com o agente causador do surto atual e isso resulte em reatividade cruzada, conferindo algum grau de proteção. Isso já foi detectado por um estudo[2] que mostrou que entre 40% e 60% das pessoas nunca expostas ao SARS-CoV-2 apresentavam células T que reagiam contra ele. É possível que as células T dessas pessoas já tivessem entrado em contato com os coronavírus do resfriado comum e os “confundissem” com o SARS-CoV-2, gerando alguma proteção parcial. Além disso, as pessoas podem apresentar diferenças na vulnerabilidade à infecção apenas por questões comportamentais, como o seu nível de conectividade com outras pessoas, o tipo de atividade que exercem ou o grau em que seguem as recomendações básicas de higiene das mãos e de etiqueta respiratória.
Considerando todos esses fatores, pode-se supor que as pessoas mais vulneráveis são as primeiras a ser infectadas, enquanto aquelas que por algum motivo são mais resistentes à infecção passam a representar uma proporção cada vez maior das pessoas ainda não infectadas. Além disso, as precauções que as pessoas adotam ao reconhecer um surto podem também reduzir ainda mais o grau de contagiosidade. Isso já foi demonstrado na Noruega[3], quando se viu que o R0 caiu de 2 para 1 antes mesmo da instituição do lockdown apenas com os cuidados e precauções que a população já tinha adotado. Tudo isso faz com que o R0 calculado no início da epidemia tenda a ir diminuindo ao longo do tempo. Isso faz com que haja uma grande diferença entre o nível teórico para a imunidade de rebanho calculado no início da infecção e o nível calculado ao longo da epidemia e que considera todas essas variantes individuais e populacionais. No caso da epidemia atual, um estudo[4] sugeriu que o nível necessário para a imunidade de rebanho poderia passar de 60-70% (com o cálculo mais simples inicial) para cerca de 10% (quando se considera uma maior heterogeneidade da população quanto às variações descritas na suscetibilidade e no grau de exposição).
Mas todas essas suposições e cálculos só são possíveis por um único motivo: os seres humanos não formam um rebanho irracional como aqueles de outros animais e, exatamente por isso, podem tomar precauções para reduzir a contagiosidade do vírus. Além do mais, é por não ter uma passividade bovina e ousar fugir da manada que um pesquisador pode questionar a ciência e fazê-la evoluir com os achados de suas pesquisas. É também por nossa maior capacidade de entendimento e para conhecer ideias diferentes, que não podemos agir como aquelas ovelhas orwellianas que baliam para tentar abafar as vozes que expressavam ideias diferentes das suas. Melhor seria tentar entender o que leva alguém a pensar de maneira diferente da nossa. Pode ser que ambos tenham razão, mas apenas vejam as coisas por ângulos diferentes. Ao demonizar[5] a priori as ideias de cientistas que pensam diferente, pode-se empobrecer a discussão. E, no final das contas, é a pluralidade das ideias – e não a sua imposição – que pode levar a melhores resultados para todos. Pode-se imaginar esses cientistas curiosos e cheios de ideias como ovelhas negras que destoam do rebanho. E nunca dependemos tanto delas.
[1] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2020283?query=TOC
[2] https://www.cell.com/cell/pdf/S0092-8674(20)30610-3.pdf?fbclid=IwAR2B2MUBXmM0NiKgdo8v2jEsooH0YAMy4W6CvJiZpR3toTc03U30NPQonsE
[3] https://www.thelocal.no/20200522/norway-could-have-controlled-infection-without-lockdown-health-chief
[4] https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.27.20081893v3.full.pdf
[5] https://www.statnews.com/2020/04/27/hear-scientists-different-views-covid-19-dont-attack-them/
