Da sabedoria dos velhos

Alguém que chega a uma idade suficiente para ser chamado de velho adquire muitas coisas durante a jornada. Além de belas rugas, é muito provável que também tenha adquirido sabedoria. É que viver é um eterno aprendizado e ser velho não é uma tarefa das mais fáceis, ainda mais nos dias atuais em que os velhos são relegados a um segundo plano ou simplesmente abandonados e esquecidos. Enfrentar diariamente dificuldades físicas e privações diversas acaba ensinando os velhos a valorizar o que realmente importa na vida. O espanhol Miguel de Unamuno dizia que a vida nos ensina muito, mas a morte ensina mais ainda. E juntas, elas ensinam mais do que a própria ciência.

A pandemia atual tem como característica marcante a sua predileção pelos mais velhos e doentes, com a média de idade das pessoas que morrem sendo de mais de 80 anos na Itália[i] e em vários outros países da Europa[ii]. Além disso, a doença tem causado um número elevadíssimo de mortes entre moradores de asilos, chegando a mais de 70%[iii] de todos os mortos na Espanha. Neste caso não são apenas pessoas mais velhas, mas pessoas que também apresentam uma situação de fragilidade física e de abandono social. Mesmo assim, parece que os velhos não reclamam. É como se de alguma forma eles já tivessem aprendido que “viver plenamente” é muito mais do que simplesmente “não morrer”.

A pandemia escancarou a nossa mortalidade e isso pode ter causado surpresa e pânico entre os mais jovens, mas não entre os velhos, pois pensar na morte já faz parte de sua vida diária. Nos últimos meses tem sido muito comum ver pessoas jovens insistindo para todo mundo ficar em casa ou para que se mantenha distanciamento físico em relação às outras pessoas, mas não lembro de ver um único velho a exigir essas medidas restritivas. É que de isolamento social e distanciamento eles já estão cheios. Também não vi nenhum velho apavorado com a possibilidade de contrair um vírus e ficar doente ou morrer, pois talvez muitos pensem como William Osler, que considerava a pneumonia como “uma grande amiga dos velhos” por oferecer uma morte relativamente rápida e indolor. Claro que isso foi dito há mais de 100 anos quando os velhos morriam de pneumonia com dignidade na própria cama e com a família toda em volta. Osler talvez não tivesse dito isso se imaginasse que um dia os velhos com pneumonia seriam apartados da família para morrerem intubados, com frio e medo em uma cama de UTI.

Por outro lado, vi muitos velhos preocupados com a saúde de seus filhos e netos até mais do que com a sua própria saúde. Isso não significa de forma alguma que os velhos não se cuidem ou que tenham desgostado da vida. Mas é bastante natural que um velho sábio entenda ser melhor que o vírus tire a vida de alguém que já viveu bastante e tem, de qualquer forma, pouco tempo de vida pela frente e poupe a vida de alguém bem mais jovem e que ainda tem muito a viver e a contribuir para a humanidade. Tanto é assim que alguns velhos alemães criaram recentemente uma campanha[iv] em que pedem aos jovens para não abdicarem de suas liberdades por causa deles, afirmando que respeitam o vírus, mas não temem nem a ele nem à própria morte, a qual fazem questão de enfrentar cercados pelas pessoas amadas quando a hora chegar. Por sorte parece haver cada vez mais pessoas encarando a morte de forma mais humana e natural, pois a campanha já tem mais de 30.000 apoiadores[v].

Isso não significa de forma alguma que as pessoas devam deixar de se cuidar em relação à pandemia nem muito menos que os velhos devam ser abandonados à própria sorte. Pelo contrário, os mais velhos devem ser muito bem protegidos por sua sabedoria e por tudo que já fizeram por nós, mas talvez se devesse tentar aumentar essa proteção sem aumentar também o isolamento em que muitos já vivem e respeitando a vontade de cada um deles. A verdade é que estamos (mal) acostumados a fazer as coisas e tomar as decisões pelos mais velhos e isso pode estar muito errado, principalmente em se tratando de velhos lúcidos.

Talvez fosse o caso de dar voz à sabedoria da velhice e ouvir o que eles têm a dizer sobre seus próprios desejos e preferências em relação a este período de isolamento social ou mesmo em relação ao eventual enfrentamento de uma forma mais grave da doença. Pode ser que eles prefiram manter um convívio social cuidadoso a aumentar ainda mais o isolamento em que já vivem. Pode ser que eles prefiram, no caso de adoecerem, permanecer em casa até o fim ou até a cura. Pode ser que aceitem algumas medidas terapêuticas desde não sejam intubados e apartados da família. E pode ser que eles queiram que se faça tudo por eles. Mas é que este “tudo” varia para cada pessoa dependendo da sua história, da sua condição atual e da sua perspectiva para o futuro. Às vezes o “tudo” significa a UTI mais bem equipada do planeta. Outras vezes o “tudo” significa apenas a presença da família e a mão bem apertada até o último suspiro.


[i] https://www.epicentro.iss.it/coronavirus/sars-cov-2-decessi-italia

[ii] https://swprs.org/studies-on-covid-19-lethality/

[iii] https://www.rtve.es/noticias/20200614/radiografia-del-coronavirus-residencias-ancianos-espana/2011609.shtml?fbclid=IwAR1XYZOgfKFvPDkc86Bif23aO401tZf8aES8rFCmH3rzcS3EGxY9EwjqJFg

[iv] http://piensachile.com/2020/05/adultos-mayores-alemanes-a-la-merkel-y-sus-ministros-no-nos-protejan-a-los-mayores-a-este-precio/?fbclid=IwAR3OaFoXWG4jxdmlmVJcXeD_wEL6VUN4-iJQ4E3tERg4vQ-GZLObLKEGcwA

[v] https://www.change.org/p/bundeskanzlerin-corona-sch%C3%BCtzen-sie-%C3%A4ltere-nicht-um-diesen-preis-selbstbestimmt-altern-und-sterben