Já faz algum tempo que a humanidade tomou um rumo estranho, afastando-se de suas origens humanas e da própria natureza. A crise atual, com seu apelo ao “distanciamento social”, agudizou esta situação de afastamento entre as pessoas e dessas em relação à natureza. O que era a opção de alguns antissociais e misantropos passou a ser visto como o novo normal e uma alternativa viável para a maioria das pessoas, já que os promotores do chamado “novo mundo pós-covid-19” conseguiram convencer muita gente de que a normalidade não voltaria como antes e que, assim, precisaríamos nos adaptar às maravilhas modernas que a tecnologia pode nos oferecer. Não é de estranhar que os arautos desse novo mundo altamente tecnológico e vigiado sejam exatamente as principais personalidades do mundo da tecnologia e do comércio virtual, e não os profissionais de saúde pública ou de outras áreas das ciências humanas.
O ser humano se desenvolveu ao longo de milênios sempre em contato íntimo com outros seres humanos e com a natureza. Aristóteles já afirmava que o homem é um ser social que precisa do contato com os outros para o seu próprio desenvolvimento e para a preservação da espécie. Negar isso ou afastar o homem do convívio com seus semelhantes é enfraquecê-lo como unidade e como grupo. Assim, qualquer tentativa de dessocialização do ser humano é uma ameaça à própria humanidade. A evolução do ser humano também se baseou em sua relação próxima com a natureza que o cerca. O cérebro humano desenvolveu as suas características tão especiais exatamente por essa proximidade com os outros seres e a natureza. Qualidades como empatia e compaixão são impossíveis em animais solitários. Em relação à natureza, é impossível não pensar em como nossos sentidos foram desenvolvidos ao longo da evolução exatamente pela variedade e intensidade dos estímulos recebidos. Estar imerso em um ambiente natural é algo riquíssimo que nenhuma máquina ou “realidade virtual” jamais será capaz de simular. O problema atual é imaginar o que pode acontecer à humanidade se evitarmos toda a riqueza do convívio íntimo com as outras pessoas e de nossa imersão na natureza.
O grande neurocientista Gerald Edelman defendia a existência de um tipo de “darwinismo neuronal”, no qual o cérebro humano se adapta ao longo da vida de uma pessoa e nas gerações sucessivas ao ambiente em que ela vive. O inverso disso também é verdadeiro e, assim, toda a capacidade neurológica que cai em desuso acaba atrofiando ao longo dos anos e das gerações futuras. Nesse darwinismo neuronal, aquelas sinapses e circuitos neuronais que não são exercitados acabam sendo enfraquecidos e perdidos. A partir disso podemos ter uma ideia do problema que pode ocorrer se as pessoas deixarem de ter contato íntimo entre si e com a natureza. Perderemos essa capacidade de nos deslumbrar com a grandeza da natureza e de nos compadecer com o sofrimento alheio. Depois de algum tempo, com essas qualidade humanas devidamente atrofiadas e esquecidas, nos aproximaremos da fria “inteligência” artificial das máquinas.
É fácil perceber que uma imagem da natureza na tela de um computador, por melhor que seja a resolução da tela e a habilidade do fotógrafo, jamais poderá ser comparada com a nossa imersão – de corpo e alma – naquela mesma cena representada na imagem. Ainda que não encontremos o enquadramento ideal escolhido pelo fotógrafo, estaremos mergulhados em aromas, cores, sons, sensações térmicas, tato, lembranças, enfim, em uma riqueza que jamais poderá ser alcançada pelo frio toque do dedo em uma tela de um smartphone. Da mesma maneira, conhecer o sofrimento de alguém nas redes sociais jamais poderá ser comparado com a experiência de abraçar e amparar alguém que passa por um momento difícil.
Por trás de todo esse afã por um novo mundo virtualizado, frio e asséptico estão interesses bem pouco altruístas, como o poder econômico e o controle da população. Trocar a natureza viva por uma tela de computador ou trocar abraços apertados por contatos virtuais poderá deixar marcas profundas na humanidade nos próximos anos e nas próximas gerações. Não se trata de descuidar dessa pandemia, a qual há de passar logo como todas as outras. Trata-se de não permitir que aproveitem este nosso momento de maior vulnerabilidade para nos transformar em zumbis incapazes de se encantar com essa maravilha que é a nossa própria condição de ser humano. A única epidemia que nos ameaça é a epidemia de desumanização.
