“Um certo dia vendavais e chuvas torrenciais varreram a cidade. Algumas pessoas chamaram o fenômeno de furacão, outros de tufão e alguns outros ainda de ciclone. Pouco interessava, na verdade, o nome atribuído à tamanha destruição. Milhares de pessoas morreram. Muitos choraram a perda de familiares e amigos. Algumas pessoas atribuíram o fato a algum tipo de castigo divino ou da natureza. O certo é que um acontecimento daquela magnitude não poderia ser causado pela mão do homem. Tinha uma causa natural e superior, e isso ajudou muita gente a superar o susto inicial e reerguer a si mesmos e a suas casas. Começaram a contar os mortos, e eram muitos. Notaram que as casas mais frágeis e construídas à beira de barrancos tinham sofrido uma devastação muito maior. Em contrapartida, as casas construídas de maneira mais robusta e em áreas mais seguras foram muito menos afetadas. Em consequência disso, o número de mortos nessas áreas de risco foi muito maior. E todos viram isso com muita naturalidade, afinal, nada pode o homem contra a força da natureza.”
A pandemia escancarou uma realidade incômoda e inquestionável: nós todos morreremos. É claro que a imensa maioria da humanidade não vai morrer por causa deste vírus que aí está e que é apenas mais uma entre todas as pestes que já nos assolaram. É muito maior a chance de que morramos por causa de outros problemas que matam muito mais gente do que este vírus, como as doenças cardiovasculares, o câncer, as demências, o diabetes, a tuberculose e a AIDS. Sobreviveremos à pandemia, mas não conseguiremos evitar aquela lei da epidemiologia, a qual afirma que todas as pessoas que nascem, um dia morrerão.
Se considerarmos como verdadeira a narrativa de que o novo coronavírus se originou em algum tipo de morcego e conseguiu de alguma forma dar um salto até a nossa espécie, então devemos encarar essa pandemia como um acontecimento absolutamente natural. Sendo assim, ela deveria ser considerada tão natural quanto um terremoto, um furacão ou um tsunami. As catástrofes naturais são terrivelmente abruptas e destrutivas, mas a recuperação das regiões atingidas também costuma ser igualmente rápida. Além disso, por mais doloroso que seja um acontecimento desses, o fato de ser encarado como natural ajuda na sua aceitação e, por isso mesmo, na superação do trauma. Não costuma haver culpados evidentes. Nenhum político ou instituição pode ser acusado por um terremoto ou furacão. Algumas pessoas atribuem o desastre a uma fatalidade, enquanto outros podem o atribuir a um tipo de castigo divino. De alguma forma, o fato de sabermos que evitar o desastre estava além de nossas possibilidades como simples mortais ajuda a aceitar e a seguir adiante com nossas vidas. O problema é que também sabemos que, apesar de os desastres serem naturais, algumas de suas consequências podem ser previsíveis e evitáveis.
Assim como sabemos que as casas construídas em barrancos têm mais chances de serem destruídas no caso de uma enxurrada, também sabemos que as pessoas com determinadas características têm maiores chances de morrer no caso de qualquer tipo de infecção respiratória. No caso da pandemia atual, vários estudos já demonstraram que o vírus é muito mais devastador em populações mais velhas e fragilizadas, com maior número de doenças concomitantes, além de determinados grupos étnicos como negros e indígenas. Além disso, o tipo de condição de moradia, educação e acesso à saúde também pode ser um determinante fundamental do prognóstico da infecção nessas populações. A questão é saber se devemos encarar esses determinantes de maior mortalidade como características naturais ou como desigualdades criadas pelo homem.
O tempo mostrou que a pandemia não era uma “gripezinha” nem uma “marolinha”, e talvez esta nossa admiração por políticos com grande tendência ao populismo explique muito do nosso mau resultado no enfrentamento da pandemia. É que já estamos construindo barracos em barrancos há tempo demais. Adoraria acreditar que se trocássemos o governo A pelo governo B acabaríamos com as condições que favoreceram o nosso mau resultado, mas a crise é bem mais antiga e a solução passa por transformações mais profundas. Enquanto os admiradores de A e B ficarem brigando entre si, deixando a velha máquina da corrupção estatal grassar hipócrita e impunemente, é isso o que teremos: um país eternamente vulnerável a qualquer tipo de crise.
Enquanto considerarmos normal que políticos superfaturem hospitais de campanha e respiradores, teremos que considerar como naturais todas essas mortes. Enquanto considerarmos normal que pessoas vivam em barracos à beira de barrancos, teremos que considerar naturais todas essas mortes. Enquanto considerarmos normal que pessoas revirem lixo nas ruas em busca de comida, teremos que considerar como naturais todas essas mortes. Enquanto considerarmos que o normal seja afastar nossos velhos de suas famílias para viverem desesperançados em asilos, teremos que considerar como naturais todas essas mortes. Enquanto privilegiarmos o tratamento hospitalar em detrimento do cuidado de atenção primária domiciliar ou ambulatorial, teremos que considerar como normais todas essas mortes. Agora, a morte natural já não parece tão natural assim.
