Estamos no ano de 2030. Há poucas semanas o nosso amigo Bernardo acordou de um quadro de coma que durou 10 anos e foi causado por uma estranha doença. Aparentemente, Bernardo está completamente recuperado. Pelo menos fisicamente, já que algumas das mudanças ocorridas no mundo ao seu redor ainda lhe causam uma indescritível aflição, algo que às vezes se manifesta como uma dorzinha profunda e mal localizada “em algum lugar entre o coração e a alma”, como ele diz. Por sorte, a mulher e a filha são muito pacienciosas com Bernardo e tentam explicar a ele essas mudanças e a forma como as pessoas rapidamente se adaptaram a elas.
Certo dia Bernardo acorda com dor abdominal e diarreia que não melhoram com as medidas habituais e resolve ir ao médico averiguar melhor a situação e conversar com um profissional atencioso a fim de buscar uma solução e ficar mais tranquilo. A esposa responde:
– Mas Bernardo, isso não se faz mais… agora falamos com o médico aqui em casa mesmo…
Em um primeiro momento Bernardo fica contente, pois acredita que o médico o irá visitar em casa, como já acontecera algumas vezes. Mas a mulher logo completa a frase:
– Temos agora a opção de ligar para o Teledoktor ou de fazer uma consulta virtual…
Bernardo fica ligeiramente horrorizado com as opções e tenta entendê-las melhor. A mulher explica que durante a tal pandemia do coronavírus, quando Bernardo entrou em coma, os médicos começaram a atender por telefone ou por consultas virtuais. No início era estranho, mas logo as pessoas começaram a gostar. Afinal, as pessoas adoram uma novidade, ainda mais quando ela vem acompanhada de alguma pitada de tecnologia futurista.
Bernardo lembrava dessa história de telemedicina, mas achava que isso nunca se sustentaria e que se tratava de uma medida temporária a ser usada naqueles dias de pandemia. A mulher explicou que no início era para ser temporária, mas que as empresas investiram muito nessas tecnologias, houve quem lucrasse muito com isso e logo as pessoas foram convencidas de que a novidade era ótima e deveria ficar conosco para sempre. Bernardo perguntou se os próprios médicos gostaram da ideia e a mulher foi taxativa:
– Sabe como é, no início eles relutaram… depois passaram a fazer os tais atendimentos virtuais e logo perceberam que não havia por que manter seus caros consultórios com toda aquela estrutura se as pessoas estavam convencidas de que o atendimento remoto era muito melhor. Resultado: logo os médicos fecharam seus consultórios, muitos se aposentaram e agora é muito raro encontrar médicos que tenham consultório.
Bernardo pensou um pouco e lembrou daquele Doutor Miguel de quem gostava muito e que já naquela época se considerava um “carneossista” por atender pessoas de carne e osso. A esposa disse que o tal médico ainda atendia em um consultório empoeirado e meio afastado da cidade, mas que sua agenda estava lotada para várias semanas, cheia de pacientes sensíveis e nostálgicos que insistiam em ser ouvidos e tocados pelo médico.
Como a dor de barriga e a diarreia persistiam, Bernardo opta por tentar um atendimento com o tal Teledoktor e liga para o número indicado. Logo é atendido por uma gravação que informa:
– Você ligou para Teledoktor. Para consulta com cardiologista, tecle 1; para consulta com gastroenterologista tecle 2; para consulta com pneumologista, tecle 3; para consulta…
Bernardo teclou logo o 2 para abreviar todo o desfile de especialidades médicas.
– Para dor abdominal, tecle 1; para diarreia, tecle 2; para azia e má digestão, tecle 3; para…
A essa altura a mulher observou uma discreta lágrima no rosto de Bernardo, mas achou que era causada pela dor. O marido desligou logo o telefone e disse que esse tipo de atendimento não resolveria o problema dele. Nesse momento, a filha entra na sala e tenta ajudar o pai, este ser que parece tão desajustado à realidade.
– Mas pai, por que você não faz uma consulta virtual? É super rápido, pois sempre tem um médico disponível. Além do mais, os algoritmos de medicina virtual têm muito mais conhecimento que os médicos do seu tempo…
Ela falava assim mesmo “do seu tempo” como se o tempo dos dois não fosse o mesmo ou como se o tempo atual não pertencesse ao pai enquanto estivesse vivo. Bernardo quis saber mais sobre esses médicos virtuais que têm tanto conhecimento e a filha explicou que os algoritmos de medicina virtual foram alimentados com todos os estudos e livros de medicina disponíveis na internet. Além disso, com o surgimento da telemedicina, o próprio conhecimento dos médicos, o seu jargão e o modo de proceder nas consultas passou a alimentar a base de dados do algoritmo e agora os “médicos virtuais” sabiam e agiam como os médicos de antigamente. Bernardo pensou um pouco e disse:
– Como assim médicos “virtuais”? Quer dizer que do outro lado da tela não estará uma pessoa de carne e osso como eu? – a essa altura Bernardo já estava um pouco alterado, mas mãe e filha atribuíam isso à dor de barriga ou algo assim.
A filha tenta acalmá-lo e explica que os atendimentos agora são feitos pelo médico que a gente escolher. Na verdade, são avatares de médicos, e a filha explica que podemos “montar” um médico conforme quisermos. Os avatares médicos de maior sucesso são o de uma médica loira muito bonita e um outro avatar que simula um médico de meia-idade, um pouco grisalho e bonitão inspirando confiança. Nisso a mulher de Bernardo solta uma gargalhada e diz:
– Você não vai acreditar… fizeram um avatar com a cara do Paulo Figueiredo, aquele galã que sempre fazia papel de médico bonitão nas novelas.
A filha não sabe quem é o tal galã, mas explica que o tal avatar ou médico virtual mexe a boca como uma pessoa normal e diz coisas muito parecidas com um “médico de verdade”. O pai só teria que ficar “plantado” em frente à tela do computador e relatar o que está sentindo, tendo o cuidado de falar pausadamente para que o algoritmo reconheça as palavras. Ela adverte que, para melhorar a compreensão pela máquina, o sistema recomenda que os pacientes não chorem nem gerem ruídos como soluços ou gemidos durante a consulta. Parece que as pessoas já aprenderam a “se comportar” perante as máquinas. Por isso o sistema estaria funcionando cada vez melhor.
A essa altura Bernardo dá uma olhadela para a mulher, beija a filha e volta para a cama. Pensa também em voltar para o coma, mas não saberia como fazê-lo. Pede que a mulher prepare um chá de boldo e volta a dormir esperando estar melhor ao acordar. Antes de apagar a luz, pede à mulher que marque uma consulta com Doutor Miguel, o carneossista.
