Essa frase é usada por Saramago em seu excelente Ensaio sobre a cegueira para se referir à estupidez de um caixa eletrônico que, apesar de ter sido saqueado até a última nota pelos infelizes que tinham cegado em decorrência da epidemia narrada no livro, apresentava na tela uma frase de agradecimento por ter-se escolhido aquele banco. A estupidez aqui retrata o fato de que as máquinas são programadas para fazer apenas aquilo proposto pelo seu criador. Elas não pensam e nunca pensarão, embora sejam ótimas na execução de tarefas para as quais os serem humanos não foram preparados pela natureza, como a realização de cálculos complexos ou o acúmulo de uma quantidade inimaginável de dados na memória. Mas elas carecem de empatia, livre arbítrio e de outras tantas características demasiadamente humanas.
Essa diferença básica entre as capacidades humanas e das máquinas fica evidente sempre que alguém sugere uma eventual superioridade intelectual das máquinas aludindo ao fato de que um dado algoritmo de computador venceu a um campeão de xadrez de carne e osso. Esquece-se do fato de que o xadrez é basicamente um jogo de combinações e sequências matemáticas, sendo esta exatamente a área de atuação das máquinas. Além disso, o próprio Kasparov atribuiu sua derrota, entre outras coisas, à “falta de psiché” de seu adversário inumano. A vida nada tem de cálculos exatos e é exatamente para enfrentar os desafios imprevisíveis da vida que as habilidades humanas foram desenvolvidas.
Dostoiévsky dizia que o homem luta diariamente para provar a si mesmo que não é apenas uma tecla de piano. Em suas Notas do subsolo ele usa essa metáfora para aludir à nossa capacidade de tomar decisões racionais sem qualquer influência de um destino já determinado pelo universo. Além disso, ele bem observa que, diferentemente das máquinas, há momentos em que os homens simplesmente optam por não fazer o que seria deles esperado. É quando “dois mais dois são cinco se torna uma coisinha encantadora”. O ser humano é muitas vezes errático, imprevisível e cheio de defeitos, mas é exatamente isso o que nos diferencia das máquinas e nos torna também encantadores. Conhecer a fundo a alma de uma pessoa é imensamente mais desafiador e recompensante que decifrar um código de computador qualquer.
Em seu livro Abbi il coraggio di conoscere, a neurocientista Rita Levi-Montalcini, que viveu mais de 100 anos e continuou ativa e escrevendo até o fim de sua vida, diferenciava os homens das máquinas principalmente pela criatividade humana, a qual ela definia como uma capacidade para ir além de um determinado contexto, extrair conceitos gerais, reelaborar informações e enfrentar desafios imprevistos. Apesar da idade avançada, ela sempre reconheceu a importância das máquinas e a sua utilidade para a humanidade, mas frisava que se trata de duas formas absolutamente diferentes de inteligência, as quais, em vez de competirem entre si, deviam ser vistas como complementares. Ou seja, deviam ser usadas apenas com a função para a qual foram desenvolvidas: ferramentas para expansão das capacidades do ser humano.
Ocorre que vivemos um momento bizarro em que a situação parece ter-se invertido e é o ser humano que agora serve como ferramenta para as máquinas a fim de expandir a “inteligência artificial” destas. Há algoritmos criados por profissionais de telemarketing e que já os estão substituindo. O mais famoso aplicativo de tradução da internet é alimentado com traduções feitas por pessoas do mundo todo sem que elas nem mesmo saibam disso. Grandes empresas, como a Microsoft, começaram a substituir seus jornalistas por robôs que seguem algoritmos criados pelos próprios jornalistas que agora começam a perder seus empregos. Isso sem falar nos novos robôs que pintam quadros e fazem “música” ou “poesia”.
É difícil imaginar um limite para essa progressiva substituição de seres humanos por máquinas, a qual é alimentada pelos próprios seres humanos. Talvez o único limite sensato fosse a nossa percepção de que uma “conversa” com uma máquina nunca terá a riqueza do contato entre pessoas de carne e osso, uma tradução literal feita por um aplicativo não pode conter toda a nuance da linguagem humana e uma matéria jornalística selecionada e redigida por algoritmos nunca terá a sagacidade de um profissional que investiga e encontra um furo jornalístico. Por outro lado, se aceitarmos como normal o hábito de conversar com máquinas, aprender com traduções incompreensíveis e ler reportagens do tipo “copiar e colar”, é porque já rebaixamos nosso nível de exigência ou nossa “inteligência natural” e, de certa forma, já nos aproximamos do nível das máquinas. Dito de outro modo, já nos desumanizamos e esquecemos até mesmo que a verdadeira arte é menos uma capacidade cognitiva que uma forma de expressão desesperada e necessária da alma de alguém.
A ideia de utilizar ferramentas para aumentar as próprias capacidades não é nova para o ser humano. Nossos ancestrais já utilizavam diversas ferramentas para auxiliar em atividades como a caça, sendo isso fundamental para a evolução da espécie e para alcançar essa aparente supremacia em relação aos outros animais. De certa maneira, não há muita diferença entre usar uma lança com ponta de pedra para caçar, uma chave de fenda para apertar um parafuso ou um software moderno para desenvolver os cálculos mais complexos. O que mudou não foram apenas as ferramentas que criamos, mas as nossas necessidades e o nosso grau de sofisticação intelectual. Como somos, de certa maneira, deuses daquilo que criamos, não deveríamos nos preocupar que a criatura se volte contra o criador. Mesmo que uma chave de fenda possa ser usada como arma e a inteligência artificial também possa ser usada para prejudicar o próprio homem, isso só pode acontecer se por trás dessas máquinas estúpidas houver um ser humano maligno disposto a desvirtuar a sua utilidade primordial. Como já foi dito, as máquinas são de facto estúpidas, mas nós seres humanos temos a opção de não sê-lo.
