O esvaziamento da vida

É possível que em poucos anos nossas ruas e estradas estejam repletas de carros sem motoristas. São aqueles carros futuristas em que todas as manobras no trajeto são realizadas por um computador conectado à internet e que, por isso mesmo, são também chamados de “carros inteligentes”. Talvez isso queira sutilmente sugerir que nossos carros atuais são muito limitados ou que nós, pelo menos enquanto motoristas, somos estúpidos. O fato é que a anunciada e cada vez mais questionada tecnologia 5G promete possibilitar que nós seres humanos andemos tranquilamente de carona com a tecnologia. Tudo em nome da eficiência e da segurança. O problema é que essa mudança pode significar muito mais do que parece.

Em um interessante livro lançado recentemente, Matthew Crawford propõe que façamos uma análise do ato de dirigir como humanismo. Em Why we drive: toward a philosophy of the open road ele analisa nossa relação com o carro e a estrada como uma analogia para a nossa relação com a própria vida e com a sensação de estar vivo e no comando de nossas escolhas. Em um extremo temos um motorista que sente o motor pulsar a cada troca de marcha e percebe cada centímetro de asfalto, reparando nos detalhes da estrada e assumindo os riscos de cada movimento realizado. Passando por uma transição que inclui câmbio automático, GPS e computador de bordo, chegamos até o outro extremo: os carros sem motoristas, nos quais deixamos o controle do carro a cargo da tecnologia e passamos a acompanhar a viagem passivamente sentados na posição de carona e sem intervir nos rumos da viagem. Para o autor, essa mudança é profunda em termos de liberdade e de responsabilidade pessoal. Mas ela também nos afeta de várias outras maneiras que às vezes nem percebemos.

Em seu ótimo Antropología del cerebro, o antropólogo Roger Bartra sugere uma teoria bastante interessante sobre o funcionamento da consciência humana. Diferentemente da visão mais neuronal que os neurocientistas costumam ter sobre o assunto, ele tenta explicar o fenômeno da consciência a partir de uma interação necessária entre um endocérebro (tronco encefálico, sistema límbico e neocórtex) e um exocérebro (próteses externas como a linguagem, a cultura e a tecnologia, as quais complementam as funções do endocérebro). É interessante imaginar o que pode acontecer com nosso endocérebro desenvolvido ao longo de milhões de anos quando o exócerebro cultural e tecnológico se desenvolve a uma velocidade alucinante. Já não memorizamos as coisas como antes porque elas estão todas na internet a um clique de distância. Não aprendemos outras línguas porque nos basta apertar um botão e o tradutor automático faz o trabalho difícil para nós. Não encontramos mais os amigos com a mesma frequência porque agora é possível haver algum tipo de “contato virtual”. E, em pouco tempo, já nem guiaremos nossos automóveis porque a tecnologia o fará em nosso lugar. Nesse ponto os exemplos são inúmeros, mas o resultado é sempre o mesmo: deixamos de fazer um esforço que nos traria algum tipo de crescimento pessoal porque a tecnologia pode fazê-lo por nós. Passamos de novo para o banco do carona, cada vez mais passivos em relação à própria vida e, agora, vislumbrando a possibilidade de um desequilíbrio crescente entre endocérebro e exocérebro, com hipertrofia deste e atrofia daquele. E ficaremos cada vez mais dependentes desse exocérebro tecnológico.

O tédio é um “privilégio” do homem moderno. Essa frase do filósofo Lars Svendersen resume bem o problema atual de nossa relação com as tecnologias. É claro que ainda podemos mudar essa trajetória e revisar a nossa relação com as tecnologias, mas o fato é que o uso inadequado da tecnologia pode ter esse efeito colateral de esvaziar de sentido a nossa vida. Passar horas apertando alguns botões em um computador ou smartphone é infinitamente menos significativo que abraçar alguém, dar um mergulho no mar ou jogar uma partida de futebol com amigos. O problema é que estamos aceitando essa nova realidade como sendo necessariamente melhor e inevitável, e o custo existencial disso para as próximas gerações pode ser enorme.

Costumamos imaginar a velhice como um período em que as pessoas vão perdendo naturalmente a vontade de viver e abandonando o protagonismo da própria vida, mas grande parte desse esvaziamento da vida talvez ocorra por questões de dinâmica social e familiar, com os velhos sendo colocados em segundo plano. O problema de nossa relação patológica com as tecnologias é que estamos trocando o prazer de viver pelas facilidades da tecnologia e, com isso, antecipando o tedium vitae que costumávamos associar à velhice e aos estados depressivos. Se este tédio vital pode ser fatal na velhice, é preocupante imaginar o futuro da humanidade quando nossa vida se resumir a apertar alguns botões.

O esvaziamento da vida funciona assim: deixamos de crescer pessoalmente porque a tecnologia nos permite isso ao assumir e hipertrofiar a sua função em nosso exocérebro. Trocamos experiências reais por “quase-acontecimentos” virtuais. Deixamos de dirigir a nossa vida e passamos ao banco do carona cada vez mais passivos e entediados. E, ao fazer isso, aceitamos uma vida que, para muitos, será cada vez mais vazia. Uma sombra esquálida da vida que devia ser.