Ceticismo médico – A arte de duvidar

A história do ceticismo filosófico é muito antiga, já existindo há mais de 2.000 anos quando o seu fundador – Pirro de Elis – definiu as bases do pensamento cético. Diferentemente da ideia atual que muitos podem ter sobre a doutrina, o cético não desacredita de tudo. Muito pelo contrário, ele reconhece que existem argumentos contra ou a favor de uma determinada ideia. A partir disso, ele aceita a dúvida e suspende o julgamento da questão, procedimento a que os antigos filósofos atribuíram o lindo nome de epoché. Para o adepto do ceticismo, é exatamente essa suspensão do julgamento que pode trazer tranquilidade para a alma. Assim, os céticos antigos estavam mais à procura de uma terapia que de uma teoria.

Quando tentei em meu livro (Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro) trazer à luz a ideia já existente de um ceticismo médico personificada em um médico fictício – o Dr. Pirro –, a ideia era demonstrar que na medicina atual há razões de sobra para o ceticismo. Mas não se trata de desacreditar a medicina em si. Longe disso, pois a medicina é uma arte milenar que tenta reduzir o sofrimento das pessoas e que se baseia na ciência para definir o que fazer. Mas a medicina não deve se basear apenas na ciência, ela também precisa se basear no bom senso, na compaixão e em saberes diversos como filosofia, humanismo e biologia, entre muitos outros.

Uma das principais razões para a necessidade de duvidar da ciência médica atual é a perniciosa onipresença dos conflitos de interesse. A partir do momento em que a grande maioria dos estudos científicos realizados para analisar a efetividade de diversas intervenções médicas (medicamentos, procedimentos, dispositivos implantáveis) é realizada e financiada pelos próprios fabricantes dessas intervenções, a dúvida se impõe como uma necessidade evidente. Nunca na história da humanidade as pessoas tomaram tantos remédios, realizaram tantos procedimentos e tiveram tantos dispositivos implantados. Nem por isso as pessoas hoje são mais saudáveis do que há algumas décadas. Duvidar aqui não significa afirmar que nenhuma dessas intervenções seja correta em determinadas situações, mas apenas analisar com muita parcimônia e imparcialidade os estudos que levam a essas indicações, sem se deixar levar cegamente por diretrizes maculadas por interesses financeiros ou por campanhas de marketing realizadas pela indústria. Além disso, ao reduzir as certezas absolutas, o ceticismo reduz a velocidade e a agressividade das intervenções, o que na maioria das situações é benéfico a médicos e pacientes.

Outra questão muito importante diz respeito à generalização de estudos realizados em populações bem específicas. O padrão-ouro científico para a avaliação das intervenções é o ensaio clínico randomizado (ECR), onde se tenta controlar todos os fatores que podem influenciar nos desfechos. O problema é que, ao fazer isso, o ECR gera um paradoxo: quanto mais perfeito é o ECR, mais ele se distancia da medicina da vida real. Mesmo admitindo que os estudos sejam metodologicamente perfeitos e não tenham sofrido interferência da indústria, eles pouco dizem sobre o efeito específico daquela determinada intervenção no paciente específico que estamos tratando. Os estudos clínicos podem mostrar que populações que se submetem a uma determinada intervenção têm menor risco de um determinado desfecho clínico que populações que não se submeteram a ela. O problema é que isso não garante o resultado do tratamento para aquele paciente individual. Duvidar aqui é um pouco como reconhecer e respeitar a individualidade e a imprevisibilidade da vida.

Assim, a medicina pode ter perdido muito de seu lado humano ao abraçar a estatística e deixar em segundo plano a pessoa de carne e osso que busca a ajuda do médico. A medicina passa atualmente por um momento complicado com o esfriamento da relação médico-paciente, o uso exagerado de intervenções médicas e das tecnologias e a medicalização excessiva de problemas comuns ao cotidiano das pessoas. O contraponto cético proposto em meu livro visa permitir uma reflexão saudável sobre esses problemas, sem jamais propor um novo tipo de certeza. Ao utilizar a dúvida e o tempo como ferramentas fundamentais, o ceticismo médico busca reduzir a influência dos fatores econômicos que distorcem os resultados das pesquisas científicas, diminuir a velocidade e agressividade das decisões médicas e restabelecer uma relação médico-paciente mais forte e individualizada. Tudo o que sempre formou a base da boa medicina.