Cosmopolitismo médico – A arte de conviver

Uma característica marcante das grandes cidades modernas é podermos encontrar pessoas de vários lugares do mundo juntas. São pessoas que conseguem superar barreiras como a cultura e a linguagem em nome de uma convivência civilizada e pacífica. Costumamos nos referir a essas metrópoles como sendo cidades cosmopolitas. É importante observar que a ideia de um cosmopolitismo não é nova em filosofia, mas é relativamente nova a ideia de que a medicina possa usar essa abordagem.

Em um ótimo livro lançado em 2019 – The philosophy of medicine –, o filósofo Alex Broadbent lança a ideia de um cosmopolitismo médico. Em primeiro lugar ele tenta definir a própria medicina, que seria o conjunto de atividades que têm como objetivo promover a saúde e mitigar ou curar as doenças. A partir disso já fica evidente que nem só os médicos praticam medicina. Há uma série de profissionais que praticam terapias alternativas, complementares e tradicionais que também apresentam objetivos bastante parecidos com a forma de medicina que hoje é hegemônica.

Ao analisar a medicina atual o autor se dedica longamente à análise da Medicina Baseada em Evidências (MBE) e de seus pontos positivos e negativos. Um aspecto curioso de sua visão da MBE é que ele a considera não tanto como uma revolução metodológica, mas como uma revolução social dentro da estrutura hierárquica da medicina, com o poder de decisão passando dos médicos clínicos para pesquisadores que muitas vezes não praticam a medicina clínica e não têm contato com os pacientes. Isso poderia explicar boa parte da postura até certo ponto arrogante dos defensores mais aguerridos da MBE em relação àquelas formas de medicina consideradas alternativas, complementares ou tradicionais, e nos leva à sua proposição de um cosmopolitismo médico, o qual deveria ser avaliado a partir de quatro instâncias: metafísica, epistêmica, moral e prática.

Na instância metafísica, o autor sugere que em todas as situações onde há discordância é necessário reconhecer que no mínimo uma das partes pode estar errada. Além disso, ele afirma que em vez de nos apegarmos a essas discordâncias, deveríamos buscar o ponto mínimo de concordância na busca por uma convivência respeitosa e pacífica. Assim, formas diferentes de fazer medicina costumam ter o mesmo objetivo comum de melhorar a saúde das pessoas e, dessa forma, poderiam atuar de maneira realmente complementar e não em constante confronto como vemos ocorrer com frequência. O maior beneficiado é a pessoa que precisa de cuidado, mas os profissionais de saúde também têm muito a ganhar com essa visão mais ampla da medicina.

A instância epistêmica exigiria o que o autor chama de humildade epistêmica. Trata-se daquela capacidade mais ou menos rara de reconhecer que nosso conhecimento, por maior que seja, é sempre incompleto e transitório. A partir do reconhecimento de nossa inevitável limitação epistêmica, ficamos mais abertos a novas formas de conhecimento e menos agressivos na aplicação desse conhecimento na prática. Isso também pode nos deixar mais receptivos a novos saberes oriundos de outras formas de fazer medicina e mais propensos a reconsiderar nossas crenças pessoais em casos de discordância.

A instância moral afirma que devemos tratar aquelas pessoas que têm visões diferentes das nossas como tendo o mesmo valor moral que nós mesmos temos, já que todos fazemos parte de uma mesma humanidade. Isso não significa que as discussões não sejam bem-vindas, mas sim que os interlocutores devem ser levados a sério sem nunca deixar de considerar o âmbito da humildade epistêmica. Assim, ninguém deveria ser menosprezado simplesmente por defender esta ou aquela visão dos cuidados de saúde.

A instância prática diz que é mais fácil duas visões diferentes de medicina chegarem a um acordo em relação ao que fazer em determinada situação do que concordarem em relação aos princípios teóricos subjacentes a essa prática. Ao defender a primazia da prática em relação à teoria, o cosmopolitismo tenta reduzir o atrito entre as visões discordantes.

Assim, a ideia de um cosmopolitismo médico visa suavizar as relações entre os diferentes profissionais envolvidos nos cuidados dos pacientes, o que pode incluir, além dos médicos, os enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e tantos outros adeptos de terapias variadas. Através dos princípios da busca de um objetivo comum, da humildade epistêmica, da igualdade moral e da primazia da prática, o autor tenta mostrar que médicos e outros profissionais relacionados aos cuidados de saúde podem conviver de maneira harmoniosa em busca de um único objetivo comum: trazer o maior benefício possível para quem precisa de cuidados.