A deformação da MBE

Pouca gente lembra da imagem conceitual inicial da Medicina Baseada em Evidências (MBE). Eram três círculos de igual tamanho e parcialmente sobrepostos simbolizando o equilíbrio entre (1) as preferências e valores dos pacientes, (2) a experiência clínica do médico e (3) as melhores evidências científicas disponíveis. Ela aparecia nos artigos iniciais de Sackett e outros pioneiros do movimento. Mas há vários problemas com essa imagem e essa (ótima!) ideia inicial da MBE. De certa forma, ela nunca chegou a sair do papel. Se o movimento tivesse seguido as ideias iniciais (o equilíbrio entre valores dos pacientes, experiência clínica do médico e evidências de pesquisas sugerido pela imagem e pela descrição inicial), ele poderia ter sido chamado de Medicina Baseada no Paciente ou Medicina Baseada no Médico. Talvez a opção pelo nome MBE, com ênfase nas “evidências”, já indicasse os rumos que o movimento iria tomar, para tristeza de alguns de seus criadores, de pacientes e de profissionais que acreditavam na ótima ideia inicial. Mas, então, o que deu errado com essa ótima ideia?

Preferências e valores dos pacientes – em nenhum momento da história da MBE as preferências dos pacientes ganharam a mesma importância que os outros componentes. O conceito inicial, com igualdade dos três círculos, só poderia ser implantado se os pacientes pudessem participar plenamente de um processo de tomada de decisão compartilhada: apresentadas as evidências científicas ao paciente em linguagem acessível e levando em consideração a experiência clínica do médico, ambos tomariam uma decisão conjunta. Na medicina da vida real, na melhor das hipóteses o médico decide sozinho e considera o que ele (o médico) entende que seja a preferência do paciente. Mas isso é muito diferente de dar voz ativa aos pacientes que tenham capacidade de participar da decisão compartilhada. É claro que, se os pacientes tivessem uma voz mais ativa e exigissem um maior esclarecimento, optariam por usar menos medicamentos do que hoje, quando os remédios são usados com base em dados extrapolados de estudos clínicos dos quais muitos pacientes da vida real talvez nem pudessem participar devido aos critérios de exclusão, como a presença de comorbidades. Além disso, dados extrapolados de grupos idealizados em estudos não necessariamente podem ser aplicados aos pacientes individuais. Outro ponto interessante seria a participação de pacientes reais na elaboração dos estudos, o que levaria à realização de pesquisas cujos resultados realmente fossem “significativos” e fizessem alguma diferença em suas vidas.

Experiência clínica do médico – ao longo da evolução da MBE a experiência clínica dos médicos só fez atrofiar. Observe que para se ter experiência em qualquer campo deve-se ter um papel ativo na tomada de decisões para, a partir dos resultados obtidos, obter um feedback que orientará as condutas posteriores. Assim se acumula experiência clínica ao longo dos anos. Ao deixar cada vez mais as decisões serem guiadas por diretrizes e algoritmos os médicos perderam muito de sua “experiência”. Pode-se ter ganho em termos de rapidez e uniformização de condutas, mas isso nem sempre é algo positivo. A experiência clínica de um profissional com décadas de experiência nunca poderia ser negligenciada. É evidente que ela deve ser complementada pelas evidências científicas e adaptada ao paciente individual que busca ajuda, mas essa é exatamente a arte da medicina. O que a evolução do movimento fez foi desumanizar o processo e a própria atividade médica, sugerindo que algoritmos possam de alguma forma superar a experiência acumulada pelos anos de profissão. Porém, a objetividade de códigos binários nunca poderia ser comparada à verdadeira sabedoria adquirida após anos de exercício profissional.

Melhores evidências científicas disponíveis – aqui entra em cena o calcanhar de Aquiles da MBE atual: as “melhores evidências científicas disponíveis” não são necessariamente boas. Por exemplo, em relação a medicamentos, a grande maioria dos estudos realizados e publicados são conduzidos pelos próprios laboratórios com todos os vieses possíveis e já conhecidos, além de não serem replicados posteriormente por algum grupo de pesquisas independente. Ao se fazer as revisões sistemáticas e metanálises, são esses estudos dos próprios laboratórios que terão o maior “peso”. Já foi dito que a indústria farmacêutica “sequestrou” a MBE, pois usa as suas ferramentas para produzir os estudos e aprovar seus próprios medicamentos. Em outras palavras: para podermos fazer MBE acabamos reféns da indústria. Além disso, ao fazer as análises de efetividade dos medicamentos, a MBE desconsidera os custos e a relevância clínica das intervenções para o paciente individual, o que tem importância fundamental para os médicos e, especialmente, para os pacientes. É por isso que as pesquisas clínicas com medicamentos nunca deveriam ser realizadas pela própria indústria farmacêutica que produz o medicamento, devendo ser realizada por institutos realmente independentes do dinheiro da indústria. De modo alternativo, as pesquisas realizadas pela indústria deveriam ser replicadas por institutos independentes para terem seus resultados validados (ou não).

A figura que ilustra o texto demonstra a gritante diferença entre o excelente modelo de MBE que foi imaginado e desenvolvido por Sackett e outros pensadores que tentaram melhorar a maneira de se exercer a medicina, promovendo um equilíbrio entre a experiência clínica do médico, as preferências do paciente e as melhores evidências científicas. A segunda figura mostra a imagem distorcida do modelo atual de MBE. O modelo que temos hoje em nada se parece com o modelo proposto inicialmente, pois os pacientes não participam ativamente da concepção dos estudos clínicos nem da tomada de decisão compartilhada, os médicos têm sua experiência clínica colocada em segundo plano e as evidências científicas são distorcidas pela influência da indústria farmacêutica, a qual parece ser a grande beneficiada pelo modelo atual de MBE. Criticar o dogma da MBE e seu modelo atual não é de forma alguma ser herege ou anticiência. Pelo contrário, é ser a favor da boa ciência – aquela ciência que aceita críticas e tenta corrigir eventuais desvios, que não se dobra aos interesses da indústria farmacêutica e que tem como principal objetivo melhorar a vida das pessoas – e tentar resgatá-la. A excelente proposta inicial da MBE ainda pode ser resgatada, mas isso exigiria boas doses de coragem e de humildade. Coragem para criar um sistema de pesquisas independente da indústria farmacêutica e humildade para reconhecer que nos afastamos de nosso principal objetivo como médicos: melhorar a vida e defender os interesses de cada pessoa que busca a nossa ajuda.