O escocês Archibald “Archie” Cochrane é sem dúvida alguma um dos nomes mais conhecidos da medicina, embora isso se deva mais à importância da organização científica que leva seu nome do que propriamente ao reconhecimento de sua vida e obra pessoal. Mas é interessante observar como alguns detalhes biográficos podem ter sido determinantes para a elaboração de suas teorias decisivas no desenvolvimento da Medicina Baseada em Evidências.
O fato de ser portador de uma forma familiar de porfiria e de ter tentado várias formas de tratamento é um dos fatores que o levou a questionar a falta de evidências científicas de muitas intervenções médicas. Além disso, em seu clássico livro Effectiveness and Efficiency ele relata como, em seu período atuando como médico em campos de prisioneiros e tendo à disposição apenas aspirinas e antiácidos para tratar milhares de pacientes com doenças variadas, ele percebe que, apesar das evidentes limitações terapêuticas, as pessoas sobreviviam e as mortes por doença eram raras. Foi assim que Cochrane reconheceu pela primeira vez a relativa desimportância de muitas intervenções médicas e a relevância da autocura ou resolução espontânea na evolução natural das doenças.
Isso o levou mais tarde a defender que todas as intervenções médicas deveriam ser estudadas para saber o que realmente alterava a história natural das doenças. Para isso Cochrane criou uma hierarquia para os diferentes níveis de evidência científica que partiam do nível mais baixo (opinião pessoal) até o nível mais alto (ensaio controlado e randomizado [RCT]), passando por níveis intermediários como os diversos tipos de estudos observacionais. A defesa que Cochrane fazia do método de randomização em RCTs era tão enfática que ele sugeria que se deveria “randomizar até doer”. Segundo ele, apenas assim se poderia conhecer a efetividade de uma determinada intervenção (seu efeito em um RCT). Porém, Cochrane reconhecia o abismo que existe entre o ambiente controlado de um RCT e as pessoas na vida real, ressaltando ser igualmente importante avaliar a eficiência com que as intervenções são aplicadas na prática médica diária.
Um detalhe importante é que Cochrane desenvolveu essas ideias principalmente para que fossem aplicadas no sistema de saúde pública britânico – um dos melhores sistemas de saúde pública do mundo – a fim de reduzir o desperdício com intervenções ineficientes ou de custo exorbitante, direcionando os recursos disponíveis para aumentar a eficiência do sistema por meio da aplicação das intervenções efetivas onde eram mais necessárias. Assim, para Cochrane a pesquisa científica sobre a efetividade das intervenções médicas era uma empreitada essencialmente de profissionais de saúde e de instituições públicas que visavam oferecer o melhor tratamento possível considerando o custo e o benefício das intervenções e os recursos disponíveis, algo bem diferente da situação atual em que a indústria domina a pesquisa científica e os custos dos sistemas de saúde são insustentáveis.
Cochrane era também um cético que reconhecia a inefetividade histórica das intervenções médicas, afirmando que se deveria considerar todas as intervenções médicas como inefetivas até que se tivesse evidências claras de sua efetividade. Isso incentivaria as pesquisas e desestimularia o uso de intervenções desnecessariamente caras ou sem efetividade comprovada. Aliás, Cochrane criticava duramente o uso desses medicamentos caros e inúteis como se fossem placebos. Em vez disso ele defendia o uso consciente dos placebos, pois reconhecia que seu benefício substancial já tinha sido devidamente demonstrado em ensaios clínicos adequados. O que pode surpreender muita gente é saber que o próprio Cochrane considerava “uma pena que indústria não produzisse uma ampla gama de comprimidos de placebo baratos e bem coloridos”. Isso deixa claro que Cochrane entendia não apenas de ciência, mas também da arte da medicina.
