As anomalias da medicina

As experiências realizadas na área da psicologia estão sempre entre as mais interessantes e criativas da ciência. Como se trata muitas vezes de pesquisas qualitativas, elas acabam por não atrair a merecida atenção dos médicos, os quais perdem muito com isso. Na década de 1940, Bruner e Postman realizaram mais um experimento genial: eles mostravam uma sequência de cartas de baralho aos sujeitos da pesquisa, os quais tinham que identificá-las. O que os sujeitos não sabiam é que, entre as cartas normais do baralho, havia cartas anômalas, como um rei de espadas vermelho ou um sete de copas preto. O interessante é que os sujeitos enxergavam essas cartas como se fossem normais, apenas raramente observando alguma anomalia. Depois de alertados para essas cartas anômalas, passaram a identificá-las com mais facilidade.

O filósofo Thomas Kuhn utiliza este exemplo em seu clássico A estrutura das revoluções científicas para ilustrar o que ele chama de anomalias na ciência. Ele também alerta para o fato de que os paradigmas – no caso, a regra de que as cartas de cada naipe devem ser de uma cor específica – determinam a percepção das pessoas e as deixam cegas para coisas tão evidentes como as cartas anômalas mostradas aos sujeitos. A ideia geral é de que nossa percepção depende não apenas dos estímulos visuais recebidos, mas também dos valores atribuídos a eles a partir de nossas experiências prévias e expectativas.

O paradigma médico-científico atual – a Medicina Baseada em Evidências ou MBE – é, em sua origem, uma ideia formidável que visava descobrir quais seriam as intervenções médicas realmente efetivas e seguras a serem instituídas pelos médicos. Para isso, a MBE se utilizava de seus três pilares (experiência do médico, valores do paciente e evidências de pesquisas) para obter um resultado equilibrado. A experiência clínica do médico era valorizada, os desejos e preferências dos pacientes eram respeitados desde o delineamento das pesquisas até a escolha das intervenções e as evidências científicas eram escrutinizadas com um rigor nunca visto. O problema é que toda essa bela ideia pressupunha um equilíbrio entre os três pilares. Além disso, a MBE nunca previu que seria “sequestrada” pela indústria farmacêutica.

Na ciência médica atual, a imensa maioria dos testes de intervenções farmacológicas é conduzida e controlada pela própria indústria que fabrica e lucra com a venda dos medicamentos. O fato de que a própria indústria farmacêutica tenha liberdade total para testar os seus produtos sem um mínimo de controle externo é uma anomalia gigante no coração da MBE. O problema é que, como dizia Kuhn, a especialização excessiva de muitos profissionais acaba dificultando a percepção das anomalias. Na prática, os médicos se limitam a observar as pesquisas sob a óptica do paradigma da MBE, tentando definir se as pesquisas se encaixam dentro de suas regras estreitas (coisas como a qualidade da randomização, o valor de p, etc.) e, com isso, deixam de enxergar a anomalia óbvia e gigante que só pode ser percebida com certo grau de distanciamento: a distorção sistemática da narrativa científica pelo fato de as pesquisas serem controladas pela própria indústria.

Para Kuhn, as anomalias crescentes minavam a credibilidade dos paradigmas até que, já enfraquecido e desacreditado, ele deveria ser totalmente recuperado ou substituído por algum outro. A recuperação da MBE ainda é possível e desejável, e autores como John Ioannidis, Vinay Prasad e Sergio Sismondo já enumeraram as medidas necessárias. Porém, tal recuperação pressupõe o reconhecimento do problema e a recuperação da altivez da medicina frente à indústria farmacêutica.

No caso da substituição da MBE por um paradigma mais novo, o problema é bem mais complexo. Já citei em meu livro que o paradigma com mais chance de substituir a MBE é a chamada “medicina de precisão”. Em que pese toda a propaganda em cima das técnicas de “precisão”, a verdade é que a vida e a doença são inerentemente imprecisas. O que temos visto é que a busca de precisão baseada em fatores genéticos acaba por acrescentar ainda mais custo e confusão, como se apenas estivéssemos acrescentando fatores de risco genéticos aos fatores de risco clássicos já conhecidos. Além disso, o paradigma da “medicina de precisão” retiraria ainda mais poder do médico e o transferiria para a indústria. E é exatamente isso que temos que evitar. Se existe alguém que possa (e queira) ajudar as pessoas na busca por uma saúde melhor, este alguém é o médico de carne e osso. A “medicina de precisão” é apenas mais do mesmo. Ou, dito de outro modo, é o mesmo, só que muito pior. Já faz tempo demais que a indústria está dando as cartas na medicina. Já passa da hora de virarmos o jogo.