A pandemia atual tem trazido, paralelamente a um mar de sofrimento, algumas novidades positivas. Muita gente passou a lidar de forma diferente com o tempo após perceber que não temos nenhum controle sobre a natureza e as imprevisibilidades da vida. Também as relações com familiares e amigos foram renovadas e reforçadas após um período de isolamento social obrigatório. Como sociedade, muitas pessoas perceberam que os problemas que tentávamos jogar para baixo do tapete – como a desigualdade social enorme – acabaram respingando até mesmo entre as classes mais abastadas. Isso sem falar em melhorias técnicas como a melhor ventilação de ambientes internos ou a exploração sensata de espaços públicos ao ar livre.
Porém, um dos grandes benefícios da pandemia – ainda não percebido pela maioria das pessoas – é que pudemos acompanhar em tempo real e de maneira escancarada a forma como funciona a pesquisa médico-científica. Com todas as luzes viradas para a “ciência”, pudemos ver como ela é fortemente influenciada pela indústria farmacêutica e como as decisões são tomadas por políticos e agências reguladoras que não estão isentos da influência dessa indústria. Essa confusão toda que vemos atualmente sempre aconteceu, mas ocorria longe dos holofotes da mídia e passava despercebida pela população e, até mesmo, por muitos profissionais da área, como uma doença grave e indolente que consome a pessoa antes mesmo que ela perceba o problema, quando então já pode ser tarde demais.
A trágica história da cloroquina é um capítulo à parte na pandemia. O medicamento começou a ser testado por pesquisadores chineses ainda em janeiro de 2020 sem qualquer conotação política. Ainda que os resultados iniciais fossem promissores, a replicação desses estudos mostrou que o medicamento poderia até mesmo ser prejudicial. Nesse ponto a discussão já tinha sido politizada no Ocidente, o que pode ter agravado a crise não apenas por possíveis efeitos colaterais do medicamento, mas por ter acirrado os ânimos de pessoas com pontos de vista políticos opostos, levando a um aumento do rechaço a medidas benéficas surgidas posteriormente. Essa história demonstra que devemos ter muito cuidado ao misturarmos política e ciência. Ela também deixa claro a importância de replicarmos os estudos para a confirmação ou refutação de seus resultados, algo que é cada vez mais raro atualmente.
Outros medicamentos surgidos na pandemia também passaram por uma evolução semelhante, o melhor exemplo sendo o remdesivir. Os resultados supostamente positivos dos estudos iniciais realizados pela própria indústria foram anunciados antes mesmo de sua publicação em periódicos científicos por meio de press release, coletivas de imprensa usadas tradicionalmente como estratégia de marketing e jamais como modo de divulgação científica séria. Bastou que os dados fossem publicados e que novos estudos fossem realizados por pesquisadores mais imparciais para ficar claro que a nova droga não era nem de longe a salvação da humanidade nessa crise. O problema é que, a essa altura, seu fabricante já tinha faturado alto.
No caso dos anticorpos monoclonais o problema é diferente. Os anticorpos monoclonais – com seu custo monstruoso – não seriam nem de longe a saída para uma crise como a atual, embora não se possa afastar ainda com certeza que algum deles seja benéfico em pacientes muito selecionados. A pandemia deixou claro o problema que já vínhamos presenciando na medicina com a sua crescente inundação por anticorpos monoclonais de relevância clínica desprezível. Além do preço exorbitante, raras são as doenças em que um gene ou receptor específico seja a causa única do problema e onde a sua inibição possa fazer uma diferença clinicamente significativa que justifique seu custo. Porém, a partir do momento em que foram dominadas as técnicas de produção de anticorpos monoclonais pela indústria de biotecnologia em associação com a indústria farmacêutica, ficou evidente que esta seria uma associação muito lucrativa, embora os resultados clínicos não tenham melhorado na mesma proporção que o lucro das empresas. Atualmente, chega-se ao extremo de desenvolver anticorpos monoclonais para condições tão disparates e multifatoriais como a enxaqueca, a malária e a osteoporose. Outro resultado nefasto dessa corrida maluca dos anticorpos monoclonais é que a indústria deixa de investir na pesquisa de medicamentos fundamentais para a humanidade, como novos antibióticos em tempos de resistência antimicrobiana crescente.
No caso das vacinas, a lógica é essencialmente a mesma. A única diferença é que o lucro astronômico tem origem na quantidade e não no custo individual do tratamento. Mesmo para quem – como eu – acredita que as vacinas são boas e importantes para a saída mais rápida da crise, fica evidente que os mesmos erros se repetem. Toda a “ciência” que embasa o uso das vacinas deriva de estudos realizados pela própria indústria, que nunca serão replicados e cujos dados mais importantes muitas vezes não ficam acessíveis nem mesmo para as agências reguladoras. Além disso, as vacinas também representam o auge da desigualdade na saúde. Como nunca, a antiga ideia de uma “Lei dos cuidados inversos” cunhada por Julian Hart ficou clara: como os pobres não conseguem pagar pelas vacinas o preço de mercado, os países ricos vacinam e revacinam pessoas saudáveis e já protegidas enquanto os miseráveis do mundo lutam para sobreviver até terem acesso a uma única dose do imunizante.
Enfim, o monopólio da ciência nas mãos de uma indústria que mantém estritas relações de dinheiro e poder com governos, mídia, gigantes da tecnologia, agências reguladoras e formadores de opinião pode ser muito prejudicial à saúde da população. Por outro lado, iniciativas de pesquisas realizadas com financiamento independente da indústria – como o estudo Recovery – mostram que é possível fazer boa ciência de maneira criativa e sem vieses financeiros que coloquem em risco a credibilidade dos estudos. Se formos suficientemente inteligentes poderemos tirar alguns benefícios de toda essa tragédia. E se formos suficientemente corajosos poderemos corrigir os desvarios da ciência atual. É evidente que devemos fazer algo para reduzir a desigualdade social no mundo todo. É igualmente óbvio que devemos fazer algo para que a medicina volte a ter altivez em relação à indústria e à própria ciência. Não é razoável que todo o sistema terapêutico dependa quase exclusivamente de estudos realizados pela própria indústria. Os estudos devem ser primariamente realizados por pesquisadores imparciais ou, de modo alternativo, tais pesquisadores deveriam ter acesso total aos dados secretos dos estudos e/ou repetir os estudos para a confirmação ou refutação dos resultados obtidos pela indústria. E não há razão para temer isso.
Alguém dirá que repetir estudos custa caro, mas custa ainda mais caro gastar fortunas em medicamentos inúteis ou perigosos. Outro dirá que repetir estudos demora muito, mas se um medicamento demora muito para mostrar seu benefício nos estudos é porque não há pressa em aprová-lo. Outro ainda dirá que é preciso muitos pacientes para repetir os estudos, mas um estudo só precisa de muitos pacientes quando o benefício é tão clinicamente insignificante que não aparece a olho nu. Enfim, podemos aprender com a pandemia e corrigir vários erros. O que não podemos mais é escondê-los debaixo do tapete como vínhamos fazendo até agora.
