As certezas diluídas

Existe algo de quântico no paradigma atual da medicina, a Medicina Baseada em Evidências (MBE), e que me inquieta há vários anos. Talvez seja apenas uma curiosa semelhança entre a MBE e a mecânica quântica em algumas ideias gerais e abstratas. Ou talvez seja apenas a minha dificuldade de apreensão de ambas em alguns pontos. Para mim é impossível não ver semelhanças entre a ideia da física de não sabermos a localização exata de uma partícula e ainda assim conhecermos a probabilidade de encontrá-la em cada ponto de sua trajetória e a ideia de não sabermos o que acontecerá com o paciente à nossa frente daqui a poucos minutos e ainda assim pretendermos saber o que acontecerá com ele daqui a 10 anos com base em alguma calculadora de risco ou a partir de extrapolações de dados de estudos bem controlados. O mesmo ocorre com a ideia de imaginar que alguém em um determinado grupo de pessoas se beneficiaria com uma intervenção clínica, apesar de não sabermos quem seja esta pessoa de sorte. Essas ideias, ainda que tenham boas intenções e possam trazer benefícios clínicos, se baseiam em probabilidades, e probabilidades são mais bem aplicadas a grupos, e não a indivíduos.

Em seu clássico A lógica da pesquisa científica, Karl Popper dizia que probabilidades são como certezas diluídas. Para ele, os cientistas utilizaram o recurso da probabilidade para lidar com o que ele chamava de “o problema da indução”. Para Popper, a demonstração de um determinado resultado em um experimento científico qualquer não nos autorizaria a generalizá-lo para outras situações. Ele ilustrava o problema com sua famosa ideia dos cisnes: o fato de vermos um ou vários cisnes brancos não nos autoriza a afirmar que todos os cisnes sejam brancos ou que não existam cisnes negros. Aqui também se pode usar probabilidades para lidar com a incerteza criada pela tentativa de generalização, mas isso jamais se pode igualar a uma verdade científica, sendo no máximo uma certeza bastante diluída ou aguada. É essa ideia da necessidade de reconhecer nossas limitações que nos leva de volta à MBE.

O problema da indução é evidente na medicina atual ao tentarmos extrapolar os resultados de RCTs para a prática clínica diária e, especialmente, para o paciente individual que se encontra à nossa frente. Ao fazermos isso, estamos realizando uma indução baseada em probabilidades derivadas dos dados de estudos científicos. Em outras palavras, estamos supondo que todos os cisnes são brancos como os dos RCTs. Mesmo que os estudos científicos fossem todos isentos dos mais variados vieses, é evidente que o ambiente do RCT é muito diferente daquele da prática clínica diária e que os sujeitos dos RCTs não costumam se parecer com a pessoa que busca nossa ajuda no consultório. Na vida real, as pessoas são bem mais velhas, doentes, polimedicadas e complexas que os sujeitos ideais criados pelos critérios de inclusão e de exclusão dos RCTs, o que diluiria também a efetividade das intervenções além de nossas certezas. Uma maneira de diminuir este problema e concentrar as nossas certezas diluídas seria abandonar os “estudos de eficácia” (RCTs atuais que só interessam à indústria e sua máquina quase-científica de aprovar medicamentos com custos e NNTs astronômicos) e abraçar cada vez mais os chamados “estudos de efetividade” (aqueles RCTs com pacientes iguais aos da vida real e cujos resultados teriam maior relevância clínica e poderiam ser mais facilmente generalizáveis).

A ideia mais importante a lembrar é de que devemos reconhecer esse caráter “diluído” de nossas certezas ao indicarmos os mais variados recursos terapêuticos ao paciente que busca nossa ajuda. Isso não significa desconsiderar o que seja melhor para um grupo de pessoas parecidas com ele ou mesmo o que tenha mais chances de ajudá-lo. Trata-se apenas de manter um certo grau de humildade e lembrar que nossa certeza clínica talvez não seja tão forte como supomos a ponto de sufocar os valores e preferências daquele paciente específico, o que não deve nos impedir de buscar uma decisão verdadeiramente informada e compartilhada.

Voltando à ideia da mecânica quântica, ainda que uma partícula possa ser considerada como “partícula e onda” ao mesmo tempo, pessoas de carne e osso não podem ser vistas simultaneamente como “indivíduo e grupo”. Aquela pessoa à nossa frente – com toda a sua história e suas aspirações – é única, e os desfechos clínicos que interessam a ela são dicotômicos, ou seja, ocorrem ou não. Além disso, sua trajetória é, em grande medida, imprevisível e dependente de suas próprias escolhas a cada momento de sua história. Usando outra metáfora de Popper, ela refaz as suas probabilidades a cada dia alterando a forma de lançar os dados. A visão quântica ou probabilística pode funcionar em nível subatômico, mas é questionável quando usada em pessoas de carne e osso. É bem possível que este simples ato de reconhecer nossas limitações e o caráter diluído de nossas certezas seja capaz de evitar boa parte dos excessos da medicina atual.