A ciência é uma das grandes conquistas da humanidade ao lado de outras criações inspiradas como as artes, as religiões e os sistemas políticos. Uma das definições de ciência diz que ela é o conjunto das atividades humanas que visam compreender o mundo por meio de experimentos sistemáticos e observações não enviesadas. Assim, a boa ciência visa descobrir as verdades do mundo a fim de ajudar a humanidade a viver melhor. Em relação aos limites do que seja a ciência, nenhum pensador teve seu nome tão ligado a isso como Karl Popper. Para delimitar a ciência e diferenciá-la de tudo aquilo que não deveria ser chamado de ciência, Popper criou seu famoso critério da falseabilidade. Segundo ele, só seria científica aquela ideia que pudesse ser testada empiricamente. A novidade da ideia de Popper é que o limite da ciência seria a possibilidade de refutar uma ideia, e não de confirmá-la empiricamente. Para ele, mesmo uma ideia confirmada várias vezes não seria uma “verdade” inquestionável. Já aquelas ideias que tivessem repetidamente a sua refutabilidade testada ganhariam um pouco mais de força a cada tentativa frustrada. Àquelas ideias que não podiam ter sua refutabilidade testada, Popper dava o nome de pseudociência.
Aqui começa a confusão. Quando se usa o termo popperiano “pseudociência”, um dos exemplos que costumam ser usados é o da psicanálise. Existe aqui uma certa injustiça ao trabalho de Freud, pois não se encaixar na definição popperiana de ciência não significa que as teorias freudianas não tenham ajudado a humanidade a desbravar a mente humana. Além disso, pesquisas científicas modernas sustentam várias teorias de Freud. O próprio Popper fazia questão de dizer que o seu critério de refutabilidade era um critério de “demarcação” e não de “significado”. Ou seja, uma teoria qualquer poderia não ser científica conforme os critérios popperianos, mas ainda assim ser repleta de significado, e este poderia bem ser o caso da psicanálise. Aliás, Popper reconhecia a importância dessas teorias pseudocientíficas ou metafísicas ao dizer que elas não eram destituídas de significado, uma vez que a metafísica funcionaria como uma fonte de onde brotam as teorias empíricas.
Se as pseudociências podem não ser um problema tão grande, o mesmo não se pode dizer das quase-ciências. Pode-se chamar de quase-ciências àquelas iniciativas que em tudo se parecem com a boa ciência, mas que diferem principalmente por seus objetivos não serem assim tão virtuosos. Não é exagero dizer que a partir do momento em que o controle de grande parte da pesquisa médica passou para as mãos da indústria farmacêutica o que fizemos foi instituir uma quase-ciência na medicina. A quase-ciência utiliza métodos científicos adequados, mas é capaz de distorcê-los para obter os resultados enviesados e lucrativos que espera. O problema é que quase ninguém hoje tenta diferenciar a boa ciência da quase-ciência. Na pesquisa médica temos muitos exemplos de quase-ciência. Ela fica evidente quando conflitos de interesses determinam vieses nos resultados que nem sempre são detectáveis por meio das ferramentas habitualmente usadas para este fim. Quando os pesquisadores escolhem desfechos de interesse e tipos de pacientes que visam apenas facilitar a aprovação de medicamentos e nada têm de parecido com os desfechos clínicos que seriam relevantes para os pacientes de carne e osso, também o que temos é uma quase-ciência.
Se a quase-ciência é uma realidade triste que ameaça a credibilidade e o futuro de uma das maiores criações da humanidade, deveríamos levar essa discussão mais a sério. Da mesma forma que as outras grandes criações humanas citadas, a ciência nunca deveria ter se afastado de seu nobre objetivo de descobrir a verdade e de ajudar as pessoas a viver melhor. Também a ciência deveria continuar tendo seu espírito original questionador e independente, em vez deste caráter burocrático e servil tão comum atualmente. Podemos perceber com relativa clareza quando somos expostos a uma arte de qualidade superior que eleva nosso espírito e quando encaramos uma arte comercial de duração efêmera e gosto duvidoso. Da mesma forma, os sistemas religiosos e políticos caíram em desgraça no momento exato em que a humanidade percebeu que eles passaram a existir apenas em nome da autopreservação e da busca de lucro, afastando-se de vez da sua nobre função de melhorar nossas vidas e reduzir nossas angústias existenciais. É preocupante pensar sobre o que aconteceria com a ciência se um dia percebermos que ela também passou a se preocupar mais com a autopreservação de seus sistemas e hierarquias ou com o lucro em vez do bem-estar da humanidade e da verdade científica.
