Na medicina atual, nenhum nome é tão citado como o de Archie Cochrane. No entanto, não está claro se as suas ideias obtiveram o mesmo alcance que seu nome ou se foram esquecidas. Archie certamente ficaria lisonjeado com a organização que leva seu nome (a ex-Collaboration e agora apenas Cochrane[1]), pois ela reflete em grande medida vários de seus ideais. Por outro lado, é bem provável que o pobre Cochrane ficasse um tanto surpreso ao ver o rumo que a medicina, o sistema de saúde e a pesquisa biomédica tomaram ao longo das décadas que se seguiram à sua morte.
Há exatos 50 anos, Cochrane lançava o livro que o faria famoso, onde explorava várias ideias relativas a melhorias nos sistemas de saúde. Em seu clássico Effectiveness and Efficiency[2] ele tenta mostrar de que forma a ciência poderia ajudar o sistema de saúde (no caso, o NHS britânico, embora a lógica se aplique a qualquer sistema de saúde) a reduzir desperdícios e, ao mesmo tempo, manter as intervenções que se mostrassem adequadas. O problema é que o tempo parece ter levado ao esquecimento essas ideias, fazendo com que o sistema de saúde e a pesquisa biomédica se transformassem exatamente naquilo que Cochrane tentava evitar.
A primeira ideia importante de Cochrane é que ele utiliza desde o título do livro o termo “eficiência” como uma das coisas mais importantes a serem consideradas. Eficiência é a forma como uma determinada intervenção, já demonstrada como efetiva nos estudos, pode ser aplicada no sistema de saúde. Trata-se de fazer o melhor possível com recursos que são sempre finitos. A eficiência não é uma preocupação quando se realizam os RCTs para avaliação das intervenções, mas deveria ser uma preocupação importante na hora de analisar as evidências e considerar a sua aplicação na vida real. Uma determinada intervenção pode até demonstrar efetividade indiscutível em um RCT, mas se o seu custo for exorbitante ou se ela beneficiar apenas uma parcela ínfima das pessoas que a utilizam – como é tão comum atualmente – ela jamais seria considerada eficiente e não deveria ser adotada como rotina pelo sistema de saúde. É evidente que nosso sistema de saúde é bastante ineficiente.

Cochrane também sabia muito bem que a forma como são delineados os estudos tem influência direta em seus resultados e na sua significância clínica. Para ele, estudos com grandes números de pacientes têm grande chance de demonstrar benefícios estatisticamente significativos, porém clinicamente irrelevantes. Isso é especialmente verdadeiro quando se realizam estudos enormes realizados para a aprovação de intervenções que acabam beneficiando apenas uma parcela pífia das pessoas que as utilizam. Cochrane sabia que, no caso de intervenções com NNTs[3] enormes (tão comuns hoje em dia), a grande maioria das pessoas que utilizam as intervenções o fazem desnecessariamente e, logo, de forma ineficiente para o sistema de saúde.
É por isso que Cochrane – para surpresa de muita gente – defendia o uso clínico de placebos. Archie dizia inclusive que os laboratórios deveriam produzir comprimidos de placebo de formatos e cores variadas para serem receitados na prática clínica pelos médicos. Ele sabia que, se a imensa maioria das pessoas que utilizam um medicamento não percebem qualquer benefício em nível individual pela substância ativa usada, seria mais interessante para todos que essas pessoas tomem placebos em vez de medicamentos caríssimos. Estava claro já para ele que essas pessoas continuariam saudáveis mesmo tomando placebos, e o sistema de saúde economizaria uma grande quantidade de recursos que poderiam ser alocados para outras intervenções realmente eficientes e necessárias.
Cochrane era um árduo defensor da boa ciência, mas ele via a ciência de forma bem diferente da ideia que temos dela hoje. Para ele, a pesquisa biomédica deveria servir à sociedade e ao sistema de saúde, e não o contrário, como vemos hoje. Os RCTs eram vistos por Cochrane como uma ótima ferramenta para avaliar as intervenções e separar o joio do trigo. Ele sabia que, se fossem avaliadas de maneira honesta (pesquisadores independentes, desfechos clínicos relevantes para os pacientes, sujeitos representativos da população, NNTs razoáveis, avaliação de custos, etc.), muitas intervenções em uso não seriam consideradas melhores que o placebo. É exatamente por isso que a indústria farmacêutica atualmente não abre mão de testar seus próprios mimos terapêuticos, pois sabe que, se eles fossem testados por pesquisadores independentes e de forma justa, poucos seriam aprovados. Cochrane via a pesquisa biomédica principalmente como forma de reduzir o uso de intervenções inefetivas ou ineficientes. Jamais deve ter passado pela cabeça de Cochrane que a pesquisa biomédica se transformaria em uma verdadeira máquina de aprovar medicamentos lucrativos e de qualidade discutível.
Conhecer as ideias de Cochrane direto na fonte é imprescindível para entendermos o quanto a medicina e a pesquisa biomédica atuais se afastaram de seus ideais. O que era visto por ele como uma forma de reduzir o desperdício, diminuir as desigualdades e economizar os recursos finitos se transformou em uma máquina de aprovação quase automática de novas e caríssimas intervenções médicas que colocam em xeque a sustentabilidade de qualquer sistema de saúde. E, para piorar, a medicina hoje tem cada vez menos controle sobre esta máquina[4].
É interessante notar que tanto Archie Cochrane como David Sackett e sua MBE visavam usar a ciência para racionalizar as intervenções médicas submetendo-as a uma análise científica honesta e imparcial. Sackett saiu de cena tão desiludido com o rumo que as coisas tomaram que sugeriu que a medicina havia se prostituído[5]. Cochrane não sabia que sua bela ideia seria corrompida e se transformaria em um problema para o sistema de saúde e a própria medicina. Ele sabia que a implementação sistemática das evidências científicas na prática clínica poderia reduzir a liberdade e a autonomia dos médicos, mas não poderia prever que ficaríamos “bovinamente”[6] assistindo a tudo isso de braços cruzados. Cochrane estaria hoje muito triste, pois apesar de ser um dos nomes mais famosos da história da medicina, suas ideias parecem ter sido há muito tempo esquecidas.

[2] https://pt.scribd.com/document/399239950/Archibald-Cochrane-Effectiveness-and-Efficiency-Health-Services-1972-pdf
[4] https://www.srobf.cz/downloads/editorial/sackett.pdf
[5] https://pnhp.org/news/howto%20get%20rich.pdf
[6] O’Mahony, S. Can medicine be cured? The corruption of a profession. Head of Zeus, 2019